Por José Tavares
A história é feita de nomes. E alguns nomes, ao inscreverem-se nas cidades, nos livros e nas memórias, encerram em si tanto o brilho das homenagens quanto as sombras das controvérsias. Assim é o caso de João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque , que, morto em 1930 em circunstâncias trágicas, passou a dar nome à capital paraibana, num dos episódios mais simbólicos e dramáticos da história política do Brasil.
A cidade que hoje carrega seu nome teve, desde sua fundação, múltiplas identidades: Cidade Real de Nossa Senhora das Neves, Filipeia, Frederikstad, Parahyba do Norte. Mas foi sob o peso do luto coletivo e da paixão política que ela se tornou João Pessoa, não apenas por lei, mas por clamor. Ainda assim, por trás da comoção, houve também dissenso, crítica e resistência — vozes que, embora abafadas na torrente da reverência, nunca deixaram de existir.
No final da tarde de 26 de julho de 1930, o então presidente da Paraíba, João Pessoa, foi assassinado com três tiros à queima-roupa na Confeitaria Glória, no Recife. O autor, João Dantas, advogado e adversário político, alegou ter sido levado ao limite por perseguições do governo à sua familia, inclusive sequestro de seu irmão, invasão ao seu apartamento e publicação de cartas confidenciais no jornal oficial do Estado.
O crime causou comoção nacional e precipitou os acontecimentos da Revolução de 1930. A imagem de João Pessoa foi rapidamente elevada à condição de mártir da República. Mas seu assassinato também acendeu um incêndio moral e político que consumiu reputações, provocou perseguições sumárias e levou à fúria incontida dos seus partidários — um verdadeiro surto de fanatismo cívico que atingiu especialmente a Paraíba.
Poucos dias depois do atentado, o bacharel Américo Falcão, que se encontava no Rio de Janeiro, reagiu à decisão dos seus coestaduanos de rebatizar a Praça Comendador Felizardo Leite, localizada no coração da capital paraibana, com o nome de João Pessoa. Achou a homenagem modesta demais diante da grandeza que foi o falecido. Em carta publicada no jornal A União, em 3 de agosto de 1930, propôs uma ideia mais pousadas:
“Penso, que esta homenagem ainda não significa o nosso afeto, a grandeza do nosso eterno reconhecimento. É preciso mais um passo adiante. Conservemos o nome do velho e illustre paraibano Comendador Felizardo, e façamos o seguinte: – Mudemos o nome de nossa capital, para João Pessoa, ficando assim: “Parahyba, capital João Pessoa.”
Despertar de um movimento cívico
A sugestão encontrou eco imediato e foi o ponto de partida para um dos mais emocionantes movimentos cívicos da história da Paraíba.
Coube ao cônego Mathias Freire transformar aquela proposta em um clamor popular. Com apoio das senhoras da elite da capital, Freire liderou passeatas, comícios, abaixo-assinados e articulações políticas. O povo se mobilizou: bandeiras negras nas sacadas, retratos em molduras douradas, luto convertido em reverência.
No dia 1º de setembro, uma multidão ocupou o Teatro Santa Rosa, onde funcionava provisoriamente a Assembleia Legislativa. O cônego discursou diante dos deputados com veemência e emoção:
“Viemos dizer isso ao Poder Legislativo porque este poder é nosso. Queremos um projeto de lei que mude o nome de nossa capital para João Pessoa!”
A proposta foi acolhida por unanimidade. O Projeto nº 4, de autoria do deputado Generino Maciel, passou a toque de caixa pelas três votações exigidas pela Constituição Estadual. Três dias depois, foi sancionada a lei.
Abaixo, o trecho central do dispositivo legal que oficializou a nova denominação da capital:
Lei n.º 700, de 4 de setembro de 1930
O Presidente do Estado da Paraíba:
Faço saber que o Poder Legislativo decretou e eu sanciono a seguinte lei:
Art. 1.º — A capital do Estado da Paraíba passará a denominar-se João Pessoa.
Art. 2.º — Revogam-se as disposições em contrário.
Se o luto uniu multidões, também silenciou críticas. Para seus opositores, João Pessoa era um político austero até a inflexibilidade, extremamente autoritário, com traços de moralismo intransigente. Seus adversários — entre eles o ex-presidente estadual João Suassuna, o deputado coronel José Pereira Lima, e inúmeros parlamentares dissidentes — acusavam-no de usar o aparelho estatal para perseguir, isolar e humilhar desafetos.
O futuro economista Celso Furtado, nascido em Pombal, aos 10 anos de idade, morava na capital paraibana quando o crime abalou o País. O atentado aconteceu exatamente no dia do seu aniversário, em 26 de julho de 1930, e a comoção deixou marcas profundas em sua memória infantil. Décadas depois, ele recordaria, com espanto e crítica, o que testemunhou naquele dia:
“A Paraíba mergulhou numa comoção histérica. Era como se todos os adversários de João Pessoa tivessem que pagar pela sua morte. O culto à sua figura virou uma espécie de religião.”
Mesmo João Suassuna, inocente do crime, foi linchado moralmente. Assassinado dois meses depois no Rio de Janeiro, deixou carta à esposa afirmando:
“Se desaparecer também, e não nos virmos mais neste mundo de tristeza e dores pungentes, poderás assegurar aos nossos filhos que sou inocente da morte de João Pessoa.”
A cidade, que desde 1654 era chamada Parahyba do Norte, tornava-se oficialmente João Pessoa. Era mais do que homenagem: era a fundação de um símbolo político, um voto histórico, uma consagração póstuma
Mas também era — e continua sendo — uma cidade marcada por tensões: entre memória e história, entre mito e realidade, entre o culto e o conflito
João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque teve uma carreira política breve, iniciada em 22 de outubro de 1928 e interrompida tragicamente em 26 de julho de 1930. Sua curta trajetória política, deixou marcas profundas — celebradas por uns, contestadas por outros.
Ao receber o seu nome, a cidade passou a carregar o peso de uma comoção e a complexidade de um legado. João Pessoa não é apenas um nome geográfico — é um campo de forças entre o mito e o homem, entre a dor e a história.
Porque há nomes que não apenas identificam. Inflamam.
José Tavares é escritor e pesquisador
Foto de capa: Antônio David
Com Liberdadepb.com.br