A quem estuda ou pesquisa o cangaço não é permitida licença poética, um estado que se nega até aos romancistas do fenômeno lampíônico, mas aos poetas tudo é permitido em nome da rima, da linguagem, da musicalidade, dito o que alguns não aceitam; vejamos o caso de um poderoso livreto de poesia com 75 páginas, “Lavoura de Ossos”, de Marcos Tavares.

Severino Marcos de Miranda Tavares faleceu em 2020 (acho) ao 72 anos, nascido em Ingá, começou a escrever em João Pessoa, a partir da fundação do Grupo Sanhauá, que reunia jovens poetas, pintores e xilogravuristas. Aos 15 anos, estreou na literatura com o livro “Fuzuê e Finados” (1964), ”Lavoura de ossos” é de 2005.

Mas confesso que “Lavoura de Ossos” só chegou às minhas mão no último sábado, 10, na Livraria do Luiz, pelas mãos de Tarcísio Pereira, meu conterrâneo, dramaturgo, romancista, membro da Academia Paraibana de letras e atual secretário de Cultura do município de Guarabira.

Tarcísio é um cabra de vasta leitura, acadêmico e dramaturgo de escol.

Sentados em volta a uma enorme távola redonda de vidro da livraria, o papo corria solto sobre influências árabe e judaica durante a colonização dos sertões nordestinos quando, sorrateiramente e falando muito baixo ao meu ouvido, Tarcísio indagou:

– Conhece? E sem dar tempo para nada, já estava com “Lavoura de Ossos” aberto, determinou, leia:

“O capitão em oito pés de quadrão”.

I – Um assassino vagueia/Dois defuntos serpenteiam/Três crianças estendem a mão./Quatro vigários malditos/Cinco versos de um bentido/Seis em oração.

 O Sétimo era Vigulino

 Nos oito pés de quadrão.

Uma cabeça sem dono/Dois corpos em abandono/Três almas em aflição./Quatro abutres renitentes/Cinco cegos penitentes/Seis palmos abertos no chão.

O sétimo era Virgulino

Nos oito pés de quadrão.

  1. Um grito de condenado/Dois suspiros de afogado/Três vigários sem fiéis/Quatro léguas de caminho/Cinco meninos sozinhos/Seis moedas de dez réis/O sétimo era Virgulino/No quadrão de oito pés.

 Um coveiro espanta a morte/Dois de paus jogam com sorte/Três dedos perdem os anéis./ Quatro dedos atirados/Cinco sonhos desprezados/Seis guizos de cascavéis/ O sétimo era Virulino/No quadrão de oito pés.

– Arretado Tarcísio, foi minha reação aos versos de exaltação de Marcos Tavares ao nosso “cavaleiro da boa figura” Virgulino Ferreira.

– Mas tem mais, Tarcísio tomou de volta o livro, folheou e, maliciosamente, fez trejeitos e com voz melíflua.

– A Maria Bonita devia ser uma tentação, disse; me mandando ler “O Cio de Maria”

O Cio de Maria

– Amigo velho, se o Virgulino sabe de um enredo desse começava a sangrar o autor do verso, quem leu, Dona Maria Déa e Corisco – não necessariamente nessa ordem.

O fato é “Lavoura de Ossos” de Severino Marcos Tavares, autor de romances e da peça de teatro “A Noite de Matias Flores”, dirigida por Fernando Teixeira lá no início dos anos 1980, chegara à minas mãos, só agora no século 21.

– Antes tarde que tarde demais, ponderei para de imediato comprar o livro, que estava por uma pechincha..

Coisa estranha porque eu fiz o papel de Matias Flores uma peça de autoria de Marcos (em 1983), e o espetáculo começava com Matias Flores levando um tiro “nos peitos”; depois fiz o papel de um Lampião enlouquecido na peça “Lampiaço – O rei do Cangão” de José Bezerra Filho.

Lembrei das peças que fiz sobre o Cangaço, inclusive da revista do teatro reboado “Quem foi que Inventou o Brasil?, onde um cangaceiro aparece como procurador de Maria Madalena, transfigurada em padroeira do Brasil, passando a limpo o Sertão, quem não era nordestino e debochando separatistas do Sul-Sudeste que se apresentassem inimigos do Nordeste, peça de 2019.

Marcos Tavares, jornalista e romancista

E só agora me apareceu esse livro porreta em que Marcos Tavares fez sua incursão poética por personagens tão icônicos para construção de arquétipos de nordestinos, de vilões, anti-heróis fora-da-lei.

Nas narrativas sobre cangaço, também há um bom caminho para a licença poética.

Recomendo “Lavoura de Ossos” e pode ser encontrado na Livraria do Luiz, uma lavoura de livros.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *