Como um país agrário, feudal até o ano de 1949, em desenvolvimento até os anos 1970, se tornou a segunda potência econômica global em 2019; está no limite da industrialização  e tecnologia avançadas e que se tornará a maior potência global econômica e militar até 2030?

Para compreender o avanço da civilização chinesa, o blog replica a seguir trechos do artigo do cientista Yao Zhongqiu recentemente publicado pelo site Outraspalavras.

A Modernidade e sua crise – vistas da China

 

por Yao Zhongqiu

Que têm os chineses a dizer sobre a Modernidade, este tema que provoca tanta controvérsia no Ocidente? Comprometida em colocar seus leitores em contato com o pensamento chinês contemporâneo, nossa coluna traz uma reflexão provocadora de Yao Zhongqiu, pensador político na Universidade de Renmin, uma das mais importantes do país. Sua visão surpreende pelo esforço para evitar o maniqueísmo e a polarização.

A civilização chinesa e a ocidental, que passaram a manter contato duradouro há 500 anos, foram capazes de colaborar por séculos, diz ele. Os primeiros contatos culturais mais intensos surgiram com a chegada dos missionários católicos. Eles impressionaram-se com uma civilização distinta da sua. Defrontaram-se com ideias que eram exóticas na Europa, mas iriam alimentar o Iluminismo. Os seres humanos são sujeitos, e não existe um “criador”; os seres humanos devem buscar sua própria felicidade em vez de tentar ascender ao reino de Deus; podem ter convicções e relações morais sólidas, independentes da religião; o Estado pode estabelecer a ordem sem depender da religião.

Mas a China, prossegue Yan Zhongquiu, envolveu-se em disputas internas e em uma sucessão de dinastias. Tornou-se incapaz de encarar um Ocidente que conquistava a América, saqueava sua prata, tranformava-a em moeda e, pouco mais tarde, desenvolvia a indústria e as armas capazes de subjugar o mundo. Derrotados nas duas “guerras do ópio”, os chineses vivem, a partir de meados do século XIX, seu “século de humilhações”.

Ele termina com a revolução de 1949 mas, também, com uma nova relação com o Ocidente. Baseia-se na ideia confucionista de que não se deve anular o Outro, mas assimilar o que ele pode aportar. Atrasada, a China assimila primeiro a indústria e os métodos de gestão soviéticos e em seguida os norte-americanos.

Assimilar, contudo, significa transformar. Yan Zhongquiu está convencido de que a crise civilizatória atual assenta-se, também, no esforço de Washington por manter a qualquer custo seu papel dominante. Mais crucial: ele pensa que a civilização chinesa, segundo mostra sua história, não cultiva ambições hegemonistas. Estaria apta, precisamente por isso, a sugerir uma modernidade distinta da Ocidental, o que inclui o empenho por super as lógicas capitalistas e por valorizar, ao mesmo tempo a unidade (todos dependemos dos destinos do planeta) e da diversidade (nenhuma concepção de mundo tem o direito de se sobrepor às demais).

O texto de Yao Zhongqiu (姚中秋), cujo título original é “Cinco séculos de transformações — uma perspectiva chinesa”, foi publicado pelo Instituto Tricontinental, que está traduzindo, em diversos idiomas, uma seleção de artigos da revista chinesa Wenhua Zongheng. Além de professor em na Escola de Estudos Internacionais de Renmin (localizada em Pequim), o dirige o Centro de Estudos Políticos Históricos da instituição. Publicou numerosos estudos e traduções sobre a história do pensamento e instituições chinesas, e atualmente se dedica a política histórica, teoria de vanguarda partidária e sistemas políticos mundiais modernos. Suas últimas publicações incluem O Momento Chinês na História Mundial (世界历史的中国时刻) e Longa e Duradoura: Uma História Política da Civilização Chinesa (可大可久:中国政治文明史).

A humanidade passa por uma agitação global de escala inédita em 500 anos: principalmente, o declínio relativo da Europa e dos Estados Unidos, o ascenso da China e do Sul Global, e a consequente transformação revolucionária do cenário internacional. Embora seja usual dizer que a era do domínio global do Ocidente tenha durado cinco séculos, isso é, precisamente, um exagero. De fato, Europa e Estados Unidos ocuparam suas posições como poderes hegemônicos por cerca de 200 anos, após alcançarem suas fases iniciais de industrialização. A primeira revolução industrial foi um ponto de inflexão na história mundial, impactando significativamente a relação entre o Ocidente e o resto do mundo. Atualmente, a era da hegemonia ocidental chegou ao fim e uma nova ordem mundial está emergindo, com a China jogando um papel predominante nesse processo. Esse artigo explora como chegamos a atual conjuntura global, analisando as diferentes fases na relação entre a China e o Ocidente.

China: de país agrário à potência industrial moderna

Fase I: Mudanças no equilíbrio entre a China e o Ocidente

O primeiro encontro entre a China e a Europa remonta a era das expedições marítimas nos séculos XV e XVI, quando o diplomata e almirante chinês Zhèng Hé (1371-1433) embarcou em suas Viagens Oceânicas (郑和下西洋, Zhèng Hé xià xīyáng) (1405-1433), seguido pelas expedições marítimas portuguesas e espanholas para a Ásia1. Desde então, a China estabeleceu contato direto com a Europa pelas rotas oceânicas.

Durante esse período, a China era governada pela dinastia Ming (1388-1644), que adotou uma visão de mundo orientada pelo conceito de tianxia (天下, tiānxià, “tudo sob o céu”)2. Este sistema de pensamento categorizou a humanidade em duas civilizações principais: a chinesa, que cultuava o céu, e a ocidental que, em geral, cultuava deuses no sentido monoteísta do termo3. É importante notar que, nessa era, os chineses tinham uma compreensão abrangente do Ocidente, considerando que este englobava todas as regiões que se estendiam ao noroeste, desde a Mesopotâmia ao Mar Mediterrâneo e, então, até a costa Atlântica, e não a noção contemporânea que, em geral, limita o Ocidente aos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Europa. Por sua vez, a civilização chinesa se estendia para o sudeste, das margens do Rio Amarelo até a bacia do Rio Yangtze em direção à costa. As duas civilizações se encontrariam na confluência dos oceanos Índico e Pacífico e, a partir de então, pode-se falar propriamente em uma história mundial. Ao mesmo tempo, tianxia propõe uma concepção universalista do mundo, na qual considera-se que a China e o Ocidente compartilham a mesma “ilha mundial”. Separadas pelas montanhas Pamir, da Ásia Central, cada civilização era pensada como tendo sua própria história, embora ainda não houvesse uma história mundial unificada, cada uma mantendo a ordem tianxia em suas respectivas partes da ilha mundial, tendo como base seus próprios conhecimentos.

Embora a dinastia Ming tenha descontinuado as viagens marítimas após a Sétima Viagem de Zheng He, em 1433, algumas ilhas nos mares do Sul (南洋, nányáng, que corresponde aproximadamente ao Sudeste Asiático) foram incorporadas ao sistema tributário do império da China (朝贡, cháogòng). Isso constituiu uma mudança significativa na ordem tianxia, comparada com as dinastias anteriores, Han (202 AEC-9 EC, 25-220 EC) e Tang (618-907 EC), nas quais os tributos eram provenientes dos Estados das regiões ocidentais (西域, xīyù, corresponde aproximadamente a Ásia Central contemporânea). Ainda mais importante foi o fato de que essa expansão em direção ao sudeste abriu o caminho da China para os mares, já que a população chinesa da costa sudeste migrou para os Mares do Sul e, com eles, produtos como seda, porcelana e chá foram introduzidos no comércio marítimo. Em comparação com os períodos de prosperidade das dinastias Tang e Song (960-1279), o comércio marítimo se expandiu, com a economia de Jiangnan (江南, jiāngnán, “sul do rio Yangtze”) majoritariamente centrada em exportações, sendo particularmente dinâmica. Consequentemente, a industrialização foi acelerada e a China se tornou, pela primeira vez, a “fábrica do mundo”.

As nações europeias não tinham vantagem no comércio com a China, no entanto, compensavam seu déficit com a prata extraída das Américas, recentemente colonizadas. Essa prata entrou na China em grandes quantidades e se tornou uma importante divisa, levando à globalização da prata. Enquanto isso, a introdução na China das sementes de batata doce e milho, nativas das Américas, contribuiu para o rápido crescimento da população nacional devido à adaptabilidade desses cultivos a condições adversas.

No entanto, o envolvimento da China na formatação de uma ordem mundial conectada pelos mares também trouxe problemas inesperados para o país, sobretudo um desequilíbrio entre a economia e as instituições políticas e militares. Enquanto a economia penetrou o sistema marítimo, as instituições políticas e militares permaneceram continentais. Essa contradição entre a terra e o mar produziu tensões internas consideráveis, levando, finalmente, ao fim da dinastia Ming. Os conflitos fronteiriços no norte e nordeste exigiam recursos financeiros significativos, porém, naquele período, a maior parte da riqueza da China provinha do comércio marítimo e estava concentrada no sudeste. Consequentemente, a educação progrediu na região costeira, levando ao domínio dos processos políticos na China por servidores públicos-acadêmicos (士大夫, shìdàfū) do sudeste, que impediam reformas tributárias orientadas a melhorar a distribuição de riqueza. Pelo contrário, o sistema tributário tradicional foi fortalecido, impondo maiores encargos ao campesinato4. Essas tensões eventualmente chegariam ao limite; o peso das taxações sobre os camponeses do norte, que viviam majoritariamente do cultivo da terra, levou à migração interna; tais migrantes acabaram por derrubar o regime Ming. Ao mesmo tempo, os recursos militares no norte não eram suficientes, o que levou à crescente influência de forças rebeldes Qing no nordeste e à sua ofensiva oportunista rumo ao sul, culminando no estabelecimento da dinastia Qing (1636-1912) em todo o país.

Xi Jimping , líder atual do império Chinês

Início: controle das regiões fronteiriças

A dinastia Qing se originou entre o povo Manchu do nordeste da China, cujas raízes culturais eram agrícolas e nômades. Ao passo que as forças Qing marchavam rumo ao sul e fundavam seu império, fizeram grandes esforços para estabelecer o controle sobre as regiões fronteiriças da China no norte e oeste, um arco que se estendia do Planalto da Mongólia às Montanhas Tianshan e ao Planalto Qinghai-Tibete. Por milhares de anos, essas regiões do noroeste eram fonte de instabilidade política, com sucessivas dinastias falhando no intento de unificar o conjunto da China. Ao integrar essas áreas ao Estado Chinês, a dinastia Qing se tornou capaz de alcançar seu objetivo histórico e político de unificação. Essa integração interna também teve impacto na posição internacional da China, com a Rússia se tornando, então, o país vizinho mais importante, e com o redirecionamento da Rota da Seda terrestre ao norte pelo estepe da Mongólia, pela Rússia até o norte da Europa.

Na segunda metade do século XVIII, esses dois “arcos” de desenvolvimento, por terra e por mar, tinham peso equivalente, mas diferiam em seu significado para a China: enquanto a terra provia segurança, os mares eram fonte de vitalidade. Contudo, tanto o desenvolvimento por terra como por mar continham dinâmicas contraditórias: as regiões do estepe noroeste não eram internamente muito estáveis, enquanto as relações de vizinhança com a Rússia e o mundo Islâmico permaneceram estáveis. Por outro lado, os mares do sudeste eram internamente estáveis, mas introduziram novos desafios para a China na forma das relações com a Europa e os Estados Unidos. Essas dinâmicas terra-mar historicamente são colocadas para a China como um impasse singular e até hoje permanecem como uma questão estratégica fundamental.

Por sua vez, os países europeus se beneficiaram mais do comércio direto com a China e ascenderam a uma posição dominante na nova ordem global. Durante o século XVI, sob a crescente decadência da Igreja Católica Romana, o nacionalismo étnico surgia na Europa, culminando na Reforma de Martinho Lutero na Alemanha. Na sequência, a Europa entrou em uma era de construção de Estados-Nação, conhecida como o início do período moderno, caracterizado pelo rompimento da autoridade da Igreja Católica e o estabelecimento da soberania das monarquias seculares, superando algumas das hierarquias e divisões criadas pelos senhores feudais e tornando todos os indivíduos iguais perante a lei do rei. O primeiro país a atingir essa configuração foi a Inglaterra, onde Henrique VIII baniu a Igreja da Inglaterra do pagamento do tributo anual ao Papado em 1533. No ano seguinte, aprovou o Ato de Supremacia, estabelecendo o rei como líder supremo da Igreja Anglicana, que se tornou a religião estatal. Por isso a Inglaterra é reconhecida como primeira nação moderna, ao passo que as mudanças constitucionais eram secundárias.

A Igreja Católica, enfrentando uma crise governamental, buscou abrir novas frentes pastorais e começou a pregar fora da Europa por meio das viagens do “descobrimento”. O Cristianismo gradualmente se tornou uma religião mundial, um dos mais importantes desenvolvimentos dos últimos cinco séculos, com missionários finalmente chegando à China no final do século XVI, depois de muitas reviravoltas.

Os missionários cristãos tinham se preparado para espalhar a mensagem de sua verdade aos chineses, e esperavam que estes fossem “bárbaros”. Mas, para a surpresa dos cristãos, eles descobriram que a China era uma civilização poderosa, com um sistema de governança sofisticado e tradições religiosas. Embora não acreditasse nos deuses personificados dos missionários, o povo chinês tinha um sistema de princípios morais, uma economia altamente desenvolvida e uma ordem estabelecida. Isso inspirou alguns missionários a desenvolver uma verdadeira admiração pela China, que incluiu a tradução de clássicos chineses e o envio destes textos para a Europa, onde tiveram um impacto notável no Iluminismo em Paris5.

Durante o Iluminismo, filósofos ocidentais desenvolveram ideias de humanismo e racionalismo, incluindo as noções de que os seres humanos são sujeitos e que um “criador” não existe; de que os seres humanos deveriam buscar sua própria felicidade em vez de tentar ascender ao reino de Deus; que podem ter convicções e relações morais sólidas, independentes da religião; que o Estado pode estabelecer a ordem sem depender da religião; que o governo direto dos indivíduos pelo soberano é o melhor sistema político, e assim por diante. É importante destacar, no entanto, que esses ideais do Iluminismo, tidos como os que formaram a base da modernidade ocidental, eram conhecimento comum na China por milhares de anos. Desse modo, o fluxo de ideias e ensinamentos da China para o Ocidente por meio dos missionários cristãos pode ser uma importante, senão a única, influência no desenvolvimento da modernização ocidental. É evidente que os países ocidentais foram os principais impulsores da modernização global nos últimos dois séculos, mas essa modernidade evocada bebeu em outras culturas, incluindo a China. É preciso reconhecer e afirmar esse fato para compreender a evolução do mundo hoje.

Em suma, durante a primeira fase da história mundializada, que abrangeu mais de 300 anos desde a primeira metade do século XV até a segunda metade do século XVIII, um sistema mundial integrado começou a se formar, com a China e o Ocidente ajustando, transformando e se beneficiando em suas interações. Da perspectiva chinesa, essa ordem mundial foi, em grande parte, justa.

Fonte: Outras Palavras    (artigo do cientista Yao Zhongqiu)

O Cafezinho e Brasil 247 (imagens)

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