Em 11 de maio de 1937, centenas de sertanejos, seguidores do beato paraibano José Lourenço foram massacrados pela Polícia e pela Aviação do Exército, na fazenda denominada Caldeirão, situada no Crato, Ceará. O episódio ficou conhecido como Massacre do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, e praticamente este episódio segue apagado da história. (O blog reproduz a seguir, um vídeo que gravou com o historiador José Bezerra Lima Irmão, em que narra um pouco sobre os acontecimentos no Caldeirão).
Beato paraibano José Lourenço foi protagonista da História do Juazeiro do Norte
Descendente de negros escravizados, José Lourenço nasceu em Pilões(PB)em 1872 e faleceu em Exu(PE) em 1946; reza a lenda que “tudo em que tocava virava ouro”, uma demonstração de suas habilidades na condução de empreendimentos.
Religioso fundamentalista, carismático a ponto de despertar a inveja política e religiosa no Juazeiro do Norte, Lourenço gerenciava para o padre Cícero Romão o sítio Baixa do Dantas, que passou a servir de entreposto para romeiros que chegavam à meca do catolicismo nordestino.
Eis que o padre Cícero recebeu do empresário Delmiro Gouveia um boi de presente, chamado Boi Mansinho, que tornou-se centro das atenções da fé dos romeiros e da inveja do deputado Floro Bartolomeu.
Acusavam Lourenço de transformar o animal em fonte de milagres, daí foi contra ele moveu-se intensa campanha no Juazeiro contra o beato, a ponto de ser defenestrado do Juazeiro.
Após ser desalojado do sítio Baixa do Dantas, o beato paraibano José Lourenço, em 1926, recebe do padre Cícero uma nova missão: cuidar de uma propriedade chamada Caldeirão dos Jesuítas (Crato) nos contrafortes da Chapada do Araripe, localizada numa área pedregosa, de topografia acidentada, que se tornaria Caldeirão de Santa Cruz do Deserto.
Religioso e empreendedor
De novo, Lourenço transforma uma terra inóspita e improdutiva numa Canaã bíblica para os romeiros.
O beato Zé Lourenço construiu sua morada ali e, do nada, surge um arraial com uma comunidade produzindo e negociando em forma de cooperativada; os moradores barraram dois riachos; Escondido e Caldeirão construindo dois açudes, além de benfeitorias de valor agregado como casa de farinha e escola.
Com base nos rígidos preceitos da religião católica da época o beato fez crescer o arraial à base de uma produção dividida de forma igualitária – um esboço de cooperativa -, o excedente se destinava à venda e os lucros revertidos na aquisição de insumos agrícolas, animais, remédios e querosene.
Sob a liderança organizacional e religiosa do beato Zé Lourenço a comunidade do Caldeirão chegou a ter mais de mil habitantes, mas a “Roda do Destino” arrasta o Beato Zé Lourenço – mais uma vez – para o centro das atenções, desta feita não apenas do Juazeiro do Norte, mas do País.
No plano local a situação econômica e social na região do Cariri Cearense torna-se gravíssima em função a seca avassaladora de 1932; grupos de romeiros começam a chegar em enxames ao Juazeiro e ao Caldeirão, movidos pela crença de prosperidade, comida fácil e libertação na fé católica.
Os proprietários de terras se queixam da falta de mão de obra barata porque muitos buscavam abrigo no Caldeirão e o beato Zé Lourenço começa a enfrentar oposição poderosa e letal; para agravar o cenário, em 26 de julho de 1934, falece o padre Cícero Romão, criando um tremendo vazio espiritual entre os católicos sertanejos, que já veneravam o clérigo como santo.
Naturalmente, a figura do beato Zé Lourenço cresce e passa a preencher o vazio espiritual dos romeiros; concomitantemente, a propriedade e suas benfeitorias foram reivindicadas pelos Salesiano com base em testamento deixado pelo padre Cícero, se consideravam herdeiros do sacerdote e assim se forma uma coalização de interesses contra o beato e seus seguidores, formada pelo clero católico, políticos da região e fazendeiros.
Fake News da Nova Canudos
Os relatos que chegam a Fortaleza é que o Caldeirão estava se transformando numa nova Canudos e o beato Zé Lourenço numa espécie de Antônio Conselheiro no Ceará, com o agravante das “influências e práticas do comunismo” que emanavam do local.
O governo, a igreja e aliados inicialmente oferecem ao beato e seus seguidores a oportunidade de deixarem o local, passagem de trem a partir do Juazeiro para seus destinos de origem. A comunidade recusou a oferta.
O governo organiza uma expedição em setembro de 1936 comandada pelo capitão do Exército Cordeiro Neto, à frente de dezenas de soldados cumpre as ordens emanadas da ditadura de Getúlio Vargas: 400 casas foram incendiadas, moagens e as roças. Nenhuma arma foi apreendida, ninguém tinha arma entre os quase dois mil habitantes do Caldeirão.
A evangelização messiânica no Caldeirão não era conduzida apenas pelo beato Zé Lourenço que tinha ao seu lado quase um “sucessor” que atendia pelo nome de Severino Tavares, também beato, originário do Rio Grande do Norte.
Quando o Caldeirão foi atacado pelas tropas governamentais, Severino Tavares não se encontrava na comunidade.
De porteiro da capela a pregador e missionário, o beato Severino Tavares não se detinha em lugar algum, adotara o estilo peregrino, realizando suas missões em vilarejos do Ceará, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.
De volta ao Caldeirão, em 1937, Severino Tavares, se deparou com o tal “Armagedom” que resultou da passagem das forças do governo.
O beato Tavares ouviu relatos, se compadeceu do choro dos romeiros que sobreviveram e haviam retornado à comunidade, mas ouviu também o que não gostou de saber.
Seu filho Eleutério Tavares havia sido capturado e levado para Fortaleza e sua filha Alexandrina estuprada por oficiais que comandaram a destruição do Caldeirão; diante de tamanha tragédia Severino reuniu a família e demais romeiros em oração e citou o capítulo 24 do livro dos Levitas.
– Se alguém ferir outra pessoa, desfigurando-a, como fez tal pessoa assim se lhe fará: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente, rezou o beato Severino Tavares, que organizou a resistência e prevendo um segundo ataque lançou uma senha para alertar a comunidade:
– LOUVADO SEJA NOSSO SENHOR JESUS CRISTO!
Ao lado de alguns familiares um certo capitão José Bezerra, que havia participado do primeiro ataque e incendiado a aldeia, prende um enviado do beato Zé Lourenço para negociação e o obriga a seguir de guia até redutos dos romeiros ainda existentes; a certa altura sua tropa se depara com uma velha senhora que apenas repetia em voz alta.
-Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Não era uma ladainha, mas a senha para o ataque dos romeiros com espingardas, foices e paus.
Ali mesmo o comandante José Bezerra tombou a golpes de foice na cabeça desferidos pelo beato Severino Tavares, que também foi morto no local. Saldo: 4 militares mortos e também quatro romeiros.
Tal qual em Canudos em 1897, a reação do governo central foi feroz e desproporcional.
De Fortaleza partiu um trem especial com tropas fortemente armadas, simultaneamente, o ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, despachava três aviões para auxiliar as forças terrestres.
Em 11 de Maio de 1937, uma tropa de 200 soldados atacou o Cadeirão, enquanto os pilotos faziam vomitar de seus aviões suas potentes metralhadoras. 700 romeiros – homens, mulheres e crianças foram mortos.
Os familiares e descendentes dos mortos nunca souberam onde encontrar os corpos, pois o governo nunca informou o local da suposta vala comum; presume-se que a vala coletiva se encontra no Caldeirão ou na Mata dos Cavalos, na Serra do Cruzeiro (região do Cariri).
Uma abordagem do historiador José Bezerra Lima Irmão
O beato Zé Lourenço fugiu para Exu, Pernambuco, onde organizou uma nova comunidade de devotos, de menor visibilidade, seguindo os mesmos princípios das de Baixa D’Antas e do Caldeirão. 1946 foi o ano do seu falecimento.
O cortejo do seu corpo traduz o seu papel na história nordestina; uma multidão seguiu em romaria de Exu até Juazeiro do Norte, onde o beato Zé Lourenço está enterrado no Cemitério do Socorro.
Fonte de consulta Capítulos da História do Nordeste, de José Bezerra Lima Irmão
O Vermelho – jornal)
Folheto de Cordel, O Caldeirão, de autor desconhecido.