O Brasil está sendo sacudido por conta de um julgamento na Suprema Corte. E decisão da Justiça não se discute – se cumpre. E cabe recurso. O blog publica texto teatral de Marcos P. Pequenos em torno de uma personagem (juíza), que precisa tomar uma decisão importante em meio às ameaças.
E agora, doutora?
Marcos Pequeno
PERSONAGENS:
DOUTORA: (durante toda a ação dramática, nenhuma fala. A sua performance teatral
será por meio de suas reações corporais em sintonia lógica e dramática com aquilo que
é ouvido no celular e na televisão, devendo, pois, transmitir os conflitos, emoções,
sentimentos, ações etc. necessários).
VOZ DO LOCUTOR DA TELEVISÃO
VOZ DO ESPECIALISTA JURÍDICO
VOZ DA SECRETÁRIA DA DOUTORA
VOZ DA FILHA
VOZ DO DESEMBARGADOR, PAI DA DOUTORA
VOZ DO BANDIDO
CENÁRIO: um sofá, um celular, um controle de televisão, um computador pequeno.
DOUTORA: (caminha apreensiva pela sala, com expressão extremamente tensa e aflita.
Olha para o relógio. Demonstra muita indecisão. Senta-se no sofá, folheia um
documento, pega uma caneta, faz menção de assiná-lo, desiste. Bebe de um só gole
uma dose de Whishy sem gelo (pausa). Trêmula, aciona algo na tela do seu celular).
VOZ DO BANDIDO (gravada no áudio do WhatsApp): Boa noite, doutora. Já faz mais de
uma semana que eu estou enviando áudios para o seu WhatsApp e o meu celular indica
que a senhora já ouviu todos esses áudios. Então, a senhora já sabe, muito bem, o que
tem que fazer: termina, amanhã, o prazo para a senhora assinar esse tal de “Habis
Corpis” para o meu chefe, soltando ele da cadeia. A senhora já foi avisada do que poderá
lhe acontecer se não assinar esse tal Habis Corpis. Vai sobrar para o seu marido, para o
seu pai e para as suas duas filhas.
DOUTORA: (aflita, desliga o celular e, em seguida, aciona o controle da TV, em direção
à plateia).
VOZ DO LOCUTOR: É grande a expectativa de qual será a decisão da justiça em relação
ao pedido de habeas corpus solicitado pelos advogados de Tonhão das bocas, acusado
de inúmeros crimes cujas penas, se fossem acumulativas, poderiam ultrapassar a mais
de 200 anos de prisão. Vejamos o que diz o doutor Fausto da Cruz, especialista no
assunto.
VOZ DO ESPECIALISTA JURÍDICO: Boa noite, caros telespectadores. O pedido de habeas
corpus, impetrado pela defesa de Tonhão das Bocas, não apresenta respaldo jurídico
suficiente para que seja atendido. Além disso, há forte indícios de que são procedentes
todas as graves acusações que pesam sobre ele, sugerindo que o mesmo é um indivíduo
de alta periculosidade, um perigo para a sociedade. Nesse sentido, penso que, em nome
da justiça, o habeas corpus será negado.
DOUTORA: (aciona o controle da TV, desligando-a. Em seguida, liga o celular).
VOZ DA SECRETÁRIA (gravada no áudio do WhatsApp): (aflita) Boa noite, não consegui
falar com a senhora pelo WhatsApp, estou lhe enviando esse áudio. Doutora, a senhora
pediu para que eu continuasse lembrando sobre o seu parecer acerca do último pedido
de habeas corpus, uma vez que a senhora não gosta de acumular serviço, e o prazo
termina amanhã.
DOUTORA: (muito aflita, mexe no celular).
VOZ DA FILHA (gravada no áudio do WhatsApp): Oi, mãe. Liguei várias vezes e a senhora
não atendeu. Está tudo bem? Voltaremos, amanhã, de Noronha. Aqui é tão bonito, mãe.
A senhora precisa conhecer. Mãe, aconteceu um fato tão estranho. Eu estava, sozinha,
contemplando o pôr-do-sol, quando um senhor se aproximou de mim, e disse: essas três
rosas pretas são, uma para você, uma para a sua irmã e a última para a sua mãe. É uma
gentileza do meu patrão que é um grande admirador da lei e da justiça. Achei tão
estranho, mãe. (risos) Esse mundo está cheio de gente maluca. (risos) E por falar nisso,
mãe. A minha amiga também está adorando, mas ela ainda não se recuperou totalmente
do susto que teve, semana passada: por um triz, ela não foi atropelada por um motorista
maluco. Eu vi tudo. Foi horrível. Mas, pensemos em coisas positivas, Tchau, mãe, a gente
se vê, amanhã.
DOUTORA: (muito aflita, mexe no celular)
VOZ DO PAI, DESEMBARGADOR (gravada no áudio do WhatsApp): Boa noite, filha. Liguei
várias vezes, hoje. Você sempre atende às minhas ligações. Está havendo algo muito
sério? O seu marido aprontou mais uma? Espero que você não esteja preocupada em
relação à sua decisão sobre o habeas corpus solicitado pelos advogados desse bandido,
o Tonhão das Bocas . Você sabe que não existe a mínima possibilidade jurídica de esse
habeas corpus ser concedido. Eu imagino que você sabe disso. (risos) Estou ensinado
padre nosso a vigário. (risos) Filha, mudando de assunto, hoje, revendo os álbuns de
família, encontrei fotos de sua colação de grau. Já lhe disse e reafirmo: foi um dos dias
mais felizes da minha vida: o seu magnífico discurso como oradora de todos os
formandos, defendendo a ideia de justiça, com unhas e dentes. O certificado recebido
de melhor aluna de todos os cursos da Universidade. Orgulha-me o fato de você ter
passado no exame da OAB, sem muito esforço. Eu, para me tornar Desembargador, foi
mais transpiração, muito esforço, mas, você, filha, tem tudo para ir muito longe e brilhar
muito mais. Filha, no próximo mês, fará um ano que você é Desembargadora. Precisamos
comemorar muito. Te amo muito, filha, continue sendo a exemplar magistrada que é.
DOUTORA: (aciona o celular).
Enfrentado ameaças pelo WhatsApp
VOZ DO BANDIDO (gravada no áudio do WhatsApp): Boa noite, Doutora. Não adianta
deixar de atender essas nossas ligações porque a senhora já sabe qual é o nosso recado.
A senhora viu, no WhatsApp, as nossas mensagens de áudio. Vou repetir, agora, com
mais detalhes, qual é a situação. Sinceramente, doutora, eu não queria estar em sua
pele. (pausa) A senhora vai ter que assinar esse tal de habis corpis. Eita, nome
complicado para tirar alguém da cadeia! Se não fizer isso, a coisa vai feder para a senhora
e para o resto da sua família. Vou explicar melhor e com mais detalhes. O meu chefe
sabe que, se for a julgamento, será condenado à pena máxima, ficará em cana, no
mínimo 30 anos, em regime fechado e em presídio de segurança máxima. Ele também
sabe que corre muito risco de vida na cadeia. Ontem, mesmo, tentaram matar ele,
dentro do presídio. Se a senhora abrir o bico e entregar essas mensagens para a justiça,
não mudará quase nada porque ele sabe que estará ferrado se for à julgamento. O meu
chefe quer ser solto, o mais rápido possível, para, quando solto, arrumar um jeito de não
ser preso outra vez, e fugir do país. Ele é muito poderoso e não será muito difícil, para
ele, se mandar do Brasil. Agora, se a senhora não der esse tal de habis corpis, a sua vida
vai virar um inferno, por vários motivos. (pausa) Primeiro, a gente sabe que a senhora já
sabe que o seu marido é um jogador inveterado de pôquer. Nos últimos meses, ele vem
perdendo muito. As dívidas de jogo dele são tão grandes que, se a senhora vender todos
os seus bens, imagino que não cobrirá nem a metade das dívidas de jogo dele. E dívida
de jogo é coisa sagrada, ele vai ter que pagar por bem ou por mal. Se ele não pagar é
caixão grande e vela preta. O meu chefe comprou todas as dívidas de jogo dele e está
querendo perdoar se a senhora der esse tal habis corpis, soltando ele. (pausa) Doutora,
eu não gostaria de estar na sua pele. Desculpe, o que vou lhe dizer: embora eu seja
bandido, eu admiro a senhora. Aliás, lhe admiro muito, mas muito mesmo, a senhora
nem imagina. É uma mulher que defende aquilo que acredita com unhas e dentes. Eu
também sou assim. Esse seu marido não merece a senhora. Sabia que, não faz nem meia
hora, ele estava na mesa de pôquer e perdeu uma bolada no jogo. Depois, com o rabo
entre as pernas, saiu com a garçonete do cassino. Acabaram de me informar que ele está
em um motel, aqui, nas proximidades do cassino. (pausa).
Marcos Pequeno é dramaturgo e professor universitário
A senhora merece coisa melhor. Livre-se desse estrupício, doutora. Se fosse minha, eu lhe daria um trato
especial. A senhora é uma coroa muito bonita e enxuta. Já sonhei com a senhora, várias
vezes. Nós dois fazendo barba, cabelo e bigode na cama. Um dia desses, eu elogiei a
senhora e a minha companheira ficou com ciúmes, e falou: “só vive falando dessa
doutora, o tempo todo. Está enrabichado por ela, é? Era só o que me faltava”. (pausa)
Desculpe, doutora, mas é isso o que eu sinto. (pausa) A nossa organização sabe que a
situação do nojento do seu marido talvez não seja suficiente para pressionar a senhora
a assinar esse habis corpis, por isso tem mais: a senhora tem a maior consideração pelo
seu pai, o velho desembargador, mas ficará muito decepcionada com o que irei lhe falar
agora: a senhora sabia que o seu pai, no final da carreira dele, como magistrado, saiu da
linha e recebeu grana para facilitar a vida de alguns figurões do crime? Sabia que ele tem
conta, no estrangeiro, nesse tal de paraíso fiscal? A senhora não achou estranho a
compra daquela cobertura em que ele mora, na zona mais nobre da cidade, por um
preço muito barato? (pausa) Gostaria de estar aí, com a senhora, nesse momento, para
lhe dar um consolo. Descobrir que o pai, que tanto admira, também não é flor que se
cheire, deve ser uma barra muito pesada. Desculpe, não estou gostando de ter que lhe
falar tudo isso, mas é o meu trabalho e tenho que fazer as “coisa” da melhor maneira
possível. (pausa) A nossa organização tem muitas provas contra o seu pai. Depende da
senhora se elas, um dia, serão divulgadas. Outra coisa, doutora, a sua secretária mora
em um local pouco iluminado, em uma área muito violenta. Existe muito latrocínio por
lá. (pausa) Mas, se tudo o que eu lhe falei, até agora, não basta para a senhora assinar o
habis corpis, tem mais. Eu não gosto que mulheres, crianças e adolescentes sejam
usados para dar um sugesta em alguém, mas quem sou eu para ir contra as ordens de
nossa organização. Se eu fosse o seu homem, talvez ousasse peitar a minha organização,
mas esse não é o caso. (pausa) Doutora, a senhora soube que a melhor amiga, de uma
das suas duas filhas, escapou, fedendo, de um atropelamento. Aquilo não foi acidental,
foi proposital. Aquela rua do colégio, onde as suas duas filhas estudam, é muito perigosa.
Nesse ano, já houve três acidentes fatais, bem perto do colégio. (pausa) A senhora já
soube que a sua filha, que está passando o final de semana em Fernando de Noronha,
recebeu três rosas pretas. Esses aviões, que vão para Fernando de Noronha, talvez não
sejam tão seguros. Podem cair em alto mar, a galera ser devorada por tubarões. (pausa)
Repito, doutora, não gosto desse tipo de sugesta, mas… doutora, o meu chefe tem
muitos inimigos e teme que seja morto na penitenciária. Toda a organização já recebeu
a ordem: se alguma coisa de grave acontecer com ele na prisão, sobrará para a senhora
e, muito mais, para os seus familiares. (pausa) Faz tempo que eu não rezo, doutora, mas,
nesses últimos dias, tenho rezado bastante para a senhora assinar esse habis corpis. Eu
nunca fiz uma promessa na vida, mas, dessa vez, eu fiz uma para São Jorge. Doutora,
depois de mulher, a coisa que eu mais gosto na vida é assistir aos jogos do meu fogão,
principalmente, no Engenhão. Eu prometi ao Santo, doutora. Pensei, no início, em fazer
uma promessa de um ano, mas, aí, já é tempo demais. Prometi ficar seis meses sem
assistir aos jogos do meu fogão. Será muito difícil cumprir essa promessa, doutora, mas,
se a senhora assinar esse tal de habis corpis, eu cumpro a minha promessa. Assine,
doutora, assim. Será bom todos nós: para a senhora, sua família, para mim que subirei
na hierarquia da organização. Sabia, doutora, que eu fui escolhido, aqui na organização,
para falar com a senhora, sobre esse habis corpis, porque sou o mais desenrolado e
tenho o segundo grau completo? Assine, doutora, para o meu chefe não correr mais o
risco de ser morto na prisão e poder fugir do país. Depois que o meu chefe sair do Brasil,
a senhora diz para a justiça que foi forçada a concordar com o habis corpis ou então
poderá ficar de bico calado e, também, a partir de agora, prestar alguns servicinhos para
a nossa organização. Garanto que a senhora ganhará muita grana. Quem sabe a gente
se conhece pessoalmente e inicia uma relação legal? Mas, agora, assine, doutora, assine,
ainda hoje, doutora. Assine o mais rápido possível, doutora, antes que muita desgraça
aconteça, assine, doutora, assine.
Doutora: (aterrorizada, segura o documento, com o olhar fixo, indeciso, e a caneta
trêmula na mão). BLACK-OUT
Marcos P. Pequeno é dramaturgo, diretor de teatro e professor da UFPB