* por Jerdivan Nóbrega de Araujo
“apenas uma mulher”
Beatriz Tavares
eu te amo como apenas uma mulher sabe amar
do nascer do sol na praia
ao pôr do sol no jacaré
no devir perene
na sombra
e no beco escuro
entre a cachaçaria e o samba
nos transformando em lenda urbana
na madrugada
ouvindo j4mpa
“já era tarde, amor
ninguém mais sabe”
ninguém mais sabe
que do pôr do sol no jacaré
ao nascer do sol na praia
eu amo como apenas uma mulher pode amar”
Os versos de “apenas uma mulher”, da poeta paraibana Beatriz Tavares, compõem um hino potente e visceral que explora a profundidade de um amor a partir de uma perspectiva feminina singular. O poema integra o livro “Quintal”, seu primeiro trabalho literário publicado pela Editora Urutau (2025, p. 83).
Mais do que um simples sentimento, o amor aqui apresentado é uma força cósmica e terrena, uma experiência que permeia desde os ciclos naturais até os recantos mais sombrios e vibrantes da existência urbana e humana.
Beatriz Tavares estrutura o poema como uma moldura, iniciando e finalizando com a afirmação central: “eu te amo como apenas uma mulher sabe/pode amar”. Esta repetição não é um mero recurso estilístico, mas a afirmação solene de uma verdade inegociável. É uma declaração de autoconhecimento e de reconhecimento de um modo de amar que é próprio, intenso e incomparável, enraizado na condição feminina.
A poeta constrói uma geografia afetiva precisa entre dois pontos opostos e complementares: “o nascer do sol na praia” e “o pôr do sol no jacaré”. A praia evoca um começo, pureza, a vastidão. O Jacaré, famoso ponto turístico de João Pessoa, representa a contemplação, o fim de um ciclo, uma beleza melancólica. Entre esses dois polos, o amor se move no “devir perene” – um estado de constante transformação e eternidade.
No entanto, é nos interstícios da cidade que esse amor ganha sua textura mais crua. O trecho “no devir perene / na sombra / e no beco escuro” fala de uma transformação constante que acontece nas margens, nos espaços não iluminados pelo olhar convencional da sociedade. Esta referência ganha contornos concretos na geografia pessoense: o beco que abriga a Cachaçaria Filipeia, caminho que liga o “Sabadinho Bom” e os bares da rua General Osório, simboliza essa periferia tanto geográfica quanto social. É na boemia e na cultura popular que a narrativa se enraíza.
Há mais: o verso “entre a cachaçaria e o samba” situa a narrativa em elementos fundamentais da cultura brasileira. A cachaçaria é o bar, o local de socialização, de confissões e, por vezes, de fuga. O samba é a trilha sonora da resistência, da alegria e da memória popular. É no cruzamento simbólico entre a potência da dor (a cachaça como anestésico) e a força redentora da arte (o samba como cura e celebração) que o amor do poema se forja e se transforma em “lenda urbana”. É um amor que não teme a marginalidade, que se faz noturno e, por isso, lendário.
O clímax emocional do poema chega com a madrugada, ouvindo J4MPA (uma referência à música “Já Era Tarde”, da banda paraibana Jambô). A letra da música ecoa no poema como um lamento: “já era tarde, amor / ninguém mais sabe”.
Este é o momento da virada. A certeza inicial dá lugar a uma dúvida existencial. A repetição de “ninguém mais sabe” ganha um peso solitário e profundo. É como se a grandeza desse amor, que os transformou em lenda, também a isolasse em uma bolha de incompreensão. A voz poética percebe que o mundo exterior não consegue decifrar a dimensão do que ela vive; o segredo que antes era um poder compartilhado, agora se revela também como uma solidão.

Apesar da sombra da melancolia, a estrutura circular do poema é um fechamento potente. A repetição da afirmação final, agora com o verbo no presente do indicativo (“pode amar”), é um ato de resistência. Não importa se “ninguém mais sabe”; a verdade íntima e poderosa do amor permanece inabalável. A mulher que ama reafirma seu poder e sua maneira única de existir no e pelo amor, completando o ciclo que vai “do pôr do sol no jacaré ao nascer do sol na praia”.
O poema “apenas uma mulher” é uma obra de rara beleza e força. Beatriz Tavares consegue, com uma linguagem ao mesmo tempo simples e carregada de simbolismo, capturar a complexidade de um amor que é eterno e efêmero, público e secreto, natural e lendário. O poema celebra a resistência do afeto nas frestas do mundo e coroa a experiência feminina do amor como uma força capaz de criar suas próprias cartografias, seus próprios mitos e sua eternidade própria.
*O poema integra o livro “Quintal”, primeiro trabalho literário de Beatriz Tavares publicado pela Editora Urutau (2025, p. 83).
Foto de Capa: Beatriz Tavares
