Pombal e o Imaginário Suassuniano – Leandro Gomes de Barros e o Coronel José Avelino na Pedra do Reino

José Tavares de Araújo Neto

Antes mesmo de surgir como paisagem simbólica em sua obra, Pombal já fazia parte da biografia afetiva e formadora de Ariano Suassuna. Suas raízes familiares o ligavam diretamente à região e à tradição sertaneja que ele mais tarde elevaria à condição de mito literário.

Seu tio materno, Alfredo Dantas Villar, o conhecido tio Dodô, era proprietário rural em Pombal e casado com Maria das Neves de Queiroga, filha do coronel José Avelino de Queiroga. Ariano conviveu intensamente com esse tio e o reconheceu como figura decisiva em sua formação imaginativa, a ponto de incluí-lo na dedicatória de O Romance d’A Pedra do Reino, entre os “poetas e profetas do Sertão”, ao lado daqueles que moldaram seu horizonte simbólico.

A mãe do escritor, Rita Dantas Villar, também mantinha laços patrimoniais com o território pombalense. Foi ela quem adquiriu a Fazenda Saco com o dinheiro obtido na venda da Fazenda Acauã, em Sousa. Essa mudança, motivada por circunstâncias familiares, redefiniu o cenário da infância de Ariano e, de certa maneira, a geografia íntima de sua imaginação.

No livro A pensão de Dona Berta e outras histórias para jovens, Suassuna relembra com ternura o período vivido na Fazenda Saco e menciona sua tia Neves como a responsável por sua alfabetização. É importante esclarecer que ele se refere a Maria das Neves Dantas Villar, irmã de sua mãe, e não a Maria das Neves de Queiroga, esposa de tio Dodô. Ariano recorda:

“Em 1932, fomos para a fazenda ‘Saco’, de meu tio materno, Alfredo Dantas Villar, tio Dodô: comecei a participar, como acompanhante, de suas caçadas e expedições sertanejas. Foi aí que minha amada tia Neves me deu uma cartilha e começou a me alfabetizar. Coitada, santa como era, não sabia que, naquele momento, estava me vendendo como escravo.”

A ironia afetuosa revela o peso simbólico desse espaço sertanejo, que representou sua iniciação às histórias, às oralidades, às paisagens épicas e ao humor que mais tarde floresceriam em sua obra. Assim, quando Pombal aparece em seu universo literário, mesmo de modo discreto, surge como raiz profunda de seu imaginário, e não como simples referência geográfica.

É nesse contexto que se inscreve a presença pombalense em O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, monumento literário em que Suassuna constrói um Sertão que combina memória, sonho e teatralidade barroca.

Nesse palco exuberante, duas figuras oriundas de Pombal, decisivas para o imaginário sertanejo, ocupam lugar de destaque no mapa mítico suassuniano: o poeta Leandro Gomes de Barros e o coronel José Avelino de Queiroga, proprietário do célebre cavalo de sela Sicala de Milão.

Leandro, pombalense de nascimento e pai do cordel brasileiro, aparece como uma das principais influências na formação da visão de mundo de Pedro Dinis Quaderna. Ariano o menciona desde as dedicatórias, entre os “poetas e profetas do Sertão”, e o resgata nos momentos em que Quaderna recorda as décimas que sabia de cor, exercícios de engenho que moldaram sua verve narrativa.

 

A presença de Dodô Dantas nessa mesma dedicatória reforça o modo como Suassuna une genealogia afetiva, literatura popular e memória sertaneja em um único eixo de criação.

A força de Leandro se revela com clareza quando Quaderna confessa que sua concepção do Sertão como Reino nasceu de um romance cantado por sua tia Filipa, obra do poeta de Pombal:

“O Sertão me aparecia, então, como um Reino, o Reino do qual falava o genial Poeta sertanejo Leandro Gomes de Barros…”

Com essa afirmação, Suassuna reconhece que a matriz simbólica da Pedra do Reino procede do cordel leandrino. Leandro é o engenheiro da imaginação que fornece a estrutura original do mito. Ariano, o arquiteto que a amplia e transforma. Se Quaderna sonha um Sertão-monarquia, é porque Leandro, muito antes, já havia concebido essa arquitetura imaginária.

Se Leandro representa a força criadora, o coronel José Avelino de Queiroga, cuja família se entrelaça à própria linhagem de Ariano, simboliza a nobreza sertaneja, a tradição coronelista e a autoridade rural. Sua presença no romance surge por meio de um emblema marcante, o cavalo de sela Sicala de Milão, nomeado com teatralidade que combina pompa e humor.

A primeira menção ocorre quando Quaderna observa um cavaleiro montado no animal:

“…montado num cavalo de sela do Coronel Queiroga, de Pombal…” (p. 473)

A pompa do nome Sicala de Milão combina galhofa e nobreza. Evoca a cavalaria medieval e o orgulho sertanejo dos criadores de montaria fina. Ariano cria uma síntese singular: o cavalo é sertanejo na musculatura, mas europeu no batismo, como se viesse de uma linhagem imaginária que atravessa oceanos e séculos.

 

Em seguida, Quaderna demonstra surpresa diante da ousadia de estrangeiros que manipulavam o animal:

 

“…eu só me admirava era de que um homem sério e sisudo, como o Coronel Queiroga, de Pombal, deixasse aquele pessoal estrangeiro tomar essas liberdades com o cavalo de sela dele!” (p. 474)

O coronel surge como figura de respeito, e o cavalo, extensão simbólica de sua honra, torna-se espelho da cultura sertaneja. O episódio se encerra com o humor característico do narrador:

“Por fundo de cavalo meu, eu não deixo nem entrar nem sair ninguém!”

O coronel Queiroga personifica o poder social; Leandro, a força criativa. Um representa o corpo da tradição, o outro fornece seu espírito. Juntos, reafirmam o lugar de Pombal na cartografia mítica de Ariano Suassuna.

Ao incluir tio Dodô entre seus “profetas”, o escritor inscreve sua própria genealogia no mesmo território simbólico que exalta.

Ao reunir Leandro, Queiroga e sua própria família na tessitura narrativa, Suassuna transforma Pombal em um duplo farol, o da poesia e o da tradição. A cidade aparece como berço da palavra criadora e da autoridade sertaneja, como se nela convivessem o guerreiro e o poeta, o cavalo Sicala de Milão e o Reino imaginado por Leandro.

No universo suassuniano, o Sertão é sempre magnificado. Mas quando Pombal surge, mesmo discretamente, percebe-se que ali pulsa uma parte essencial do coração mítico da Pedra do Reino.

REFERÊNCIAS DAS EDIÇÕES CONSULTADAS

SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. © 1971.

Ed. digital. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.

ISBN: 978-85-03-01218-8.

SUASSUNA, Ariano. A pensão de Dona Berta e outras histórias para jovens. Organização de Carlos Newton Júnior; ilustrações de Manuel Dantas Suassuna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021.

# José Tavares é escritor e pesquisador do cangaço.

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