Por José Tavares de Araújo Neto

Há histórias que começam em silêncio — gestadas nos corredores da esperança — até se tornarem grito coletivo. Assim nasceu o SUS.

Antes dele, o Brasil se dividia: de um lado, quem contribuía para a Previdência Social; do outro, milhões de invisíveis, que tinham na caridade a única porta de entrada para o cuidado. Era um país que dizia amar seu povo, mas não cuidava de suas feridas.

Foi então que, na década de 1970, algo começou a mudar. Nas universidades, nos postos de saúde, nos movimentos sociais, germinava a ideia de que a saúde não poderia ser privilégio. Surgia o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, embalado pela utopia de Alma-Ata: “Saúde para todos.”

Na linha de frente, nomes que o Brasil deveria pronunciar em pé:

Sérgio Arouca, cuja voz, na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), ecoou com a força de um manifesto: saúde é direito, não mercadoria.

Hésio Cordeiro, estrategista, um dos arquitetos de um sistema que ainda hoje salva vidas antes mesmo do nascer.

David Capistrano da Costa Filho, sanitarista e poeta da política pública, que transformou teoria em prática: combateu o HIV com humanidade, enfrentou manicômios e abriu portas onde antes só se viam muros.

Nascimento de um grande plano de saúde

Foi desse embate entre sonho e realidade que, em 1988, a Constituição escreveu em pedra aquilo que tantos já carregavam na alma:

“Saúde é direito de todos e dever do Estado.”

(Art. 196 da Constituição Federal)

Nascia o Sistema Único de Saúde: universal, gratuito, de portas abertas para cada corpo, cada história, cada cidadão.

O SUS tem uma beleza que as estatísticas não revelam.

Ele está na atenção primária que acolhe, nas UBS de bairro onde enfermeiras sabem o nome das crianças antes mesmo de aprenderem a andar.

Está nos transplantes, em que o Brasil é referência mundial — e tudo realizado de graça.

Está na vacinação em massa, essa coreografia coletiva que o mundo inteiro admira.

Está no Samu que atravessa madrugadas para impedir que alguém morra sozinho.

É um sistema que cuida do começo, do meio e do fim.

Universalidade, integralidade, equidade: palavras difíceis traduzidas em gestos simples — venha, a casa é sua.

E foi num episódio aparentemente banal que o mundo voltou seus olhos para o SUS.

O jornalista norte-americano Terrence McCoy, correspondente do Washington Post, estava em Paraty quando sofreu um corte na cabeça ao fechar o porta-malas do carro. Nada extraordinário — exceto pelo que veio depois.

O SAMU veio imediatamente.

No hospital público, McCoy recebeu pontos, raio-x, tomografia, atendimento médico completo.

E então esperou o que qualquer norte-americano esperaria:

A conta.

Aquele papel que nos Estados Unidos pode custar o semestre na universidade de um filho, ou anos de endividamento.

Nos EUA, uma ambulância pode custar mais do que o carro que o levou ao hospital.

Mas a conta não veio.

Não havia o que cobrar.

Terrence McCoy ficou desconcertado.

Perguntou. Reperguntou.

— Quanto eu pago?

E ouviu a frase mais brasileira do mundo:

— Nada. Aqui é o SUS.

O jornalista transformou sua perplexidade em reportagem.

Lá fora, viralizou.

Aqui dentro, muitos só então perceberam o óbvio: aquilo que o mundo inveja, nós costumamos desprezar.

Quando olhamos além do Atlântico, vemos que nem todos têm esse privilégio.

Nos Estados Unidos, quem não tem seguro pode falir por causa de uma cirurgia.

No Reino Unido, o NHS, admirável, enfrenta filas e limitações.

Em países ricos, a saúde é boa — mas muitas vezes não é gratuita.

Aqui, no Brasil, pobre ou rico, desempregado ou empresário, brasileiro ou estrangeiro recém-chegado — o acesso é igual.

Aqui, a saúde tem CPF, não saldo bancário.

Talvez o maior legado de David Capistrano tenha sido nos ensinar que saúde não cabe numa receita médica.

Saúde é moradia, dignidade, emprego, comida na mesa.

É política pública com rosto humano.

 

Ele dizia que o SUS é mais que um sistema: é um projeto ético de país.

E é.

Mesmo quando tentam desgastá-lo, sucateá-lo ou privatizá-lo aos poucos.

O SUS resiste.

Resiste porque tem milhões de defensores que nem sabem que são: o povo que o usa, o povo que o sustenta.

O SUS é o Brasil que salvou vidas na pandemia.

É o Brasil que vacinou crianças e idosos.

É o Brasil que funciona.

Quando volto para casa depois de acompanhar meu filho  no Hospital Regional de Pombal, fico olhando o movimento na porta: gente simples, de mãos calejadas, que sabe o valor de uma consulta, de um remédio, de um cuidado. E sempre me pergunto:

— Como pode um país tão desigual ter criado algo tão profundamente igualitário?

A resposta é simples:

O SUS nasceu da coragem de sonhar grande.

E segue vivo porque, apesar de todas as crises, o Brasil ainda é capaz de fazer o que é certo.

O SUS não é perfeito.

Mas é o que há de mais perfeito na ideia de Brasil.

E, enquanto existir, nenhum brasileiro estará completamente desamparado.

#José Tavares é escritor e pesquisador do Cangaço.

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