A cor das palavras

José Tavares de Araújo Neto

Há palavras que chegam antes da pessoa. Entram na sala, sentam-se, ocupam o espaço — e só depois o sujeito aparece. Negro, por exemplo, é uma delas. Crescemos ouvindo que o dia ruim é “dia negro”, que as contas complicadas são “buraco negro”, que algo perigoso é “mercado negro”. A palavra se infiltra nas frases, e, sem perceber, aprendemos que negro é sempre o que não presta, o que preocupa, o que assombra. E quando finalmente encontramos uma pessoa negra, já estamos prontos: a palavra chegou primeiro e fez o estrago.

Preconceito não nasce do acaso. Ele se alimenta do que ouvimos, do que repetimos, do que deixamos passar como se fosse piada, expressão inocente. Racismo, machismo, homofobia, gordofobia, capacitismo, etarismo — há um catálogo inteiro de formas de diminuir o outro. Cada uma tem sua máscara, sua forma de se vestir como “brincadeira” ou “opinião”. Mas por trás delas há sempre o mesmo mecanismo: a criação de uma hierarquia, o desejo de transformar alguém em menos.

E basta uma palavra.

Quando dizemos “negro de alma”, “coisa de viado”, “mulher para casar”, não estamos descrevendo situações. Estamos instruindo gerações. Estamos pintando o mundo com rótulos que aprisionam.

Há quem diga que é exagero. Que palavra não dói. Mas dói. Dói porque ela não fica só no vocabulário — ela se transforma em olhar atravessado no shopping, em currículo descartado, em corpo suspeito. A língua não é apenas o que falamos: é o que pensamos.

Racismo é isso: um julgamento automático antes do encontro.

E não é só racismo. É sexismo quando se espera que a mulher seja delicada e o homem, forte. É xenofobia quando o sotaque de um imigrante provoca risos. É religiosidade seletiva quando se respeita o terço no peito, mas se teme o turbante na cabeça. É capacitismo quando alguém acha que deficiência significa incapacidade de sonhar. É gordofobia quando o corpo se torna argumento para que a pessoa não ocupe determinados lugares. É etarismo quando se decide que velho já passou da hora e jovem ainda não entende nada. É elitismo quando a pobreza vira falha moral. É aporofobia quando o pobre vira invisível.

Preconceito é a arte de resumir pessoas.

E talvez seja hora de começar a desafiar as palavras: perguntar por que “negro” é sempre o negativo, por que a diversidade nos assusta tanto, por que precisamos diminuir o outro para caber no mundo.

A crônica da vida só muda quando a gente muda o vocabulário.

Porque palavras não descrevem apenas a realidade: elas constroem. Elas podem machucar — ou podem libertar. Tudo depende de como escolhemos usá-las.

E talvez um dia, quando alguém disser negro, a primeira imagem que venha não seja a de algo ruim, mas a de um povo que brilhou apesar de tudo: negro como a noite que guarda estrelas; como o café que desperta; como a pele que resiste.

Negro como o que é vivo, forte e insubstituível.

Negro como o que é luz.

José Tavares é escritor e pesquisador do fenômeno Cangaço

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