José Tavares de Araújo Neto

No coração da mata onde Palmares respirava, a história se movia como fogo em capim seco. O quilombo, que nascera para ser refúgio, já era reino — um reino erguido pela coragem, pela fuga, pela teimosia em existir fora das garras da escravidão. E como todo reino, também enfrentou seus próprios dilemas.

Ganga Zumba era o mais velho. Líder respeitado, conhecia a dureza do mundo e sabia que cada vitória custava sangue. Quando os portugueses estenderam a mão com a promessa de paz, ele viu no gesto uma chance de preservar o que tinham construído. Era um acordo frágil, cheio de entrelinhas, mas ainda assim uma possibilidade de respiro. Libertariam os que já estavam em Palmares, mas em troca ninguém mais poderia acolher fugitivos.

Para ele, aquilo parecia um mal menor. Para Dandara, era o mal inteiro.

Ela ouvira a proposta como quem escuta ameaça. Sabia que não existe meia liberdade, assim como não existe meia corrente. Se Palmares aceitasse o acordo, que quilombo seria? Um refúgio fechado, que viraria as costas a quem fugia do cativeiro? Um lugar de portas trancadas enquanto irmãos e irmãs sangravam nas senzalas?

Não. Dandara se levantou.

Sua voz, firme como tronco de barriguda, cruzou a assembleia improvisada. Capoeirista, guerreira, estrategista, ela sabia que a paz oferecida pelos colonizadores tinha preço demais. Ao seu lado, Zumbi, jovem e já carregado de propósito, partilhava da mesma visão. Era impossível concordar com uma aliança construída às custas de dor alheia.

O quilombo dividiu-se.

De um lado, Ganga Zumba, cansado de guerra. Do outro, Dandara e Zumbi, certos de que aceitar o acordo seria trair o próprio coração de Palmares. O rompimento entre tio e sobrinho partiu a comunidade ao meio, como relâmpago rasgando céu escuro.

A história registrou o desfecho: o acordo fracassou, e Palmares voltou à resistência aberta. As tropas cercaram, atacaram, incendiaram. Dandara lutou em cada batalha, até o último fôlego. Quando a queda final se aproximou, preferiu a morte à escravidão, lançando-se da pedreira como quem recusa, até o fim, qualquer algema.

Ganga Zumba buscou a paz possível. Dandara escolheu a liberdade inteira.

E, entre as duas escolhas, o tempo decidiu qual delas incendiaria o imaginário do futuro. Não porque uma fosse mais nobre que a outra, mas porque, na fibra mais profunda do sonho de um povo, liberdade não admite concessão.

Hoje, quando seu nome ressurge nas lutas contemporâneas, Dandara segue lembrando que resistir não é questão de bravura. É questão de pertença. É saber que Palmares não começou na mata e não terminou nela. Palmares continua em cada gesto que recusa ser acorrentado.

E, por isso, Dandara ainda caminha.

Imagem: ilustração Google

#José Tavares é escritor e pesquisador

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