A mídia especializada em entretenimento mostra que a série “Cangaço Novo”, produção da Amazon Prime com direção de Aly Muritiba e Fábio Mendonça, está na lista das produções mais assistidas em 49 países; os articulistas ressaltam a qualidade hollyoodiana das cenas de violência – receita certa para o sucesso, elogiando o pujante elenco, integrado por atores e atrizes nordestinos, mas capitulando diante de uma realidade: como o cangaço lampiônico tornou-se resiliente na modalidade de crime e tentador ao despertar empatia com seus personagens, todos anti-heróis.
A série é espetacular, deixando para traz muito do que foi feito no cinema e na televisão sobre o cangaço. Nada de clichês, cenas filmadas com fundo verde, rostos europeus.
E com muitas referências lampiônicas. Ubaldo, personagem da série, diz que entrou para o crime para socorrer o pai moribundo num hospital sem que a família tenha condições para pagar o tratamento; já Virgulino disse, matreiramente, em entrevista no Juazeiro, que havia entrado para o cangaço para vigar a morte do pai; a emboscada da sequência final evoca Angico e tem cena de cangaceiro novo violentando filha de um camponês obrigado a acoitar o bando e que depois mata o estuprador e some no oco do mundo com a família.
A justiça com as próprias mãos. isso é Cangaço!
Alguns pesquisadores e estudiosos do fenômeno cangaço que abalou o Nordeste entre os anos 20 e 30, torcem o nariz para as abordagens sobre o cangaço feitas pela TV e Cinema, por rejeitarem qualquer licença poética ou abordagens ficcionais dos roteiros. Todos são desnecessariamente exigentes, e gostariam de ver nas telas a reprodução dos fatos como os fatos ocorreram.
Com exceção de “Baile Perfumado”, dirigido por Paulo Caldas e Lírio Ferreira (1997) reconstruindo outro filme, feito pelo icônico Benjamim Abrão, feito em 1937, com magistral interpretação do ator Luiz Carlos Vasconcelos no papel de Virgulino Ferreira.
Aliás, Luiz Carlos também pontifica interpretação em “Cangaço Novo” no papel do senador ao lado de Marcélia Cartaxo ( líder religiosa), Alice Carvalho (a vaqueira, ou nova cangaceira Dinorah), Allan Souza( Vaqueiro), Fernando Teixeira ( comerciante) Buda Lira (popular). Atores e atrizes nordestinos de primeira grandeza. Talvez esteja aí o acerto da seleção de elenco, que primou por atores paraibanos, pernambucanos e potiguaras para o sucesso da série, além de suas locações na Paraíba e Rio Grande do Norte.
As interpretações de Marcélia Cartaxo e Alice Carvalho são majestosas.
A série seduz pela força das cenas de ação, locações no Sertão nordestino, os dramas e tragédias familiares e o imaginário do cangaço em nossa região, sem sotaques horrorosos dos atores globais, que até tentam, mas que foneticamente não funcionam e nem convencem.
Alice Carvalho talvez tenha se inspirado em Dadá
O enredo e o velho cangaço
A família Ferreira passou para a história por conta dos irmãos Antônio, Virgulino, João, Ezequiel e Livino. Só sobre Virgulino Lampíão foram publicados centenas de livros além de milhares de reportagens. São dezenas os grupos de WhatsApp voltados para discussões sobre o assunto, o Evento Cariri Cangaço realiza, recorrentemente, encontros que reúnem centenas de pesquisadores e estudiosos, além de canais no You Tube. O cangaço é uma fonte inesgotável de tragédias, estética nordestina, aventura humana e denúncia política.
A série “Cangaço Novo” bebe na fonte principal do cangaço, a partir da saga de um criminoso chamado Valdetário Carneiro, morto em 2003 durante confronto com a polícia. Natural de Caraúbas, Rio Grande do Norte, Valdetário não escondia ser fã de Virgulino Ferreira e até usava chapéu da aba quebrada, além de se comparar a Lampião; o que o transformou num espécie de “novo cangaceiro” nordestino que, segundo a polícia, protagonizou 100 ataques a bancos em vários estados durante os anos de 1990 e 2000.
A série vai do drama da família Vaqueiro à corrupção política nos municípios nordestinos mostrando as disputas dos clãs e a origem de suas fortunas e sobre a montanha de dinheiro ilegal irrigado para campanhas eleitorais; o vilão da série é um político pedófilo, estuprador de chefe de milícia. É disso que trata a série.
Os pesquisadores do cangaço não deveriam nem se queixar, pois as personagens do Virgulino e Maria Déa, aparecem nas alucinações de Dinorah majestosamente nos lajedos do Pai Mateus(PB). Cenas de estupro e abusos praticados pelos “novos cangaceiros” remetem aos “velhos cangaceiros”, e pouco vai adiantar torcer o nariz para a abordagem do “banditismo social” porque a série suscita isso também.
Só em mostrar ao mundo do streaming o talento dos artistas nordestinos, locações feitas em regiões rurais da Paraíba e Rio Grande do Norte e polemizar sobre o cangaço, Aly Muritiba e Fábio Mendonça e todo o elenco, merecem aplausos.
Bravo!
Fotos: divulgação.