Por José Tavares de Araújo Neto
Em A Saga do Sargento Clementino Quelé no encalço de Lampião e na Revolta de Princesa, ainda no prelo, busco reconstruir a trajetória de Clementino José Furtado — o Sargento Quelé, figura decisiva nos principais conflitos armados que moldaram o sertão entre 1924 e 1936. Minha motivação foi resgatar um personagem injustiçado pela história, frequentemente lembrado apenas como “volante truculento”, mas silenciado enquanto protagonista militar, político e humano de sua época.
Antes da farda, Clementino foi agricultor próspero e líder político em Santa Cruz, distrito de Triunfo. Exercia forte influência local e gozava de prestígio junto à sua comunidade, como registra o escritor Érico de Almeida: “conhecemo-lo desde 1921… onde era figura de prestígio eleitoral”.
A disputa política, porém, mudaria seu destino. Durante um pleito local, Clementino recusou-se a ceder à pressão de autoridades que tentavam obrigá-lo a apoiar determinado candidato. Em represália, forjaram um processo contra ele, acusando-o de homicídio. Cercado pela polícia e ameaçado, Clementino reuniu dezessete homens, entre irmãos e parentes, formando seu próprio grupo de defesa. A situação o levou a refugiar-se em fazendas de aliados políticos no município de Princesa, Paraíba.
É nesse período que ocorre um dos episódios mais impactantes do livro: o contato direto com Lampião. Quem registra é o soldado Medalha. Os bandos de Lampião e Quelé estavam acampados próximos; houve uma discussão armada envolvendo cangaceiros, na qual Quelé chega a enfrentar o próprio Lampião verbalmente. Pouco depois, Clementino rompe com o bando e se alista nas forças volantes como voluntário para combatê-lo.
Aqui nasce a metamorfose que o livro acompanha: de agricultor respeitado, Clementino torna-se policial volante, especialista em perseguição ao cangaço.
Para alcançar o resultado desejado, reuni um conjunto de fontes primárias e secundárias: telegramas, relatórios de governo, fichas policiais, recortes de jornais da década de 1920 e depoimentos da época. Além disso, dialoguei com a produção de historiadores e pesquisadores de referência na historiografia do cangaço, como Érico de Almeida, Pedro Nunes Filho, Frederico Pernambucano de Mello e Sérgio Augusto de Sousa Dantas, cuja seriedade documental sustentou o rigor da minha pesquisa e me permitiu confrontar versões distorcidas e mitificadas do período.
Desde o início, percebi que Quelé não poderia ser compreendido sem sua dor íntima: Lampião havia assassinado seu irmão Pedro Quelé, e essa ferida se converteu em motivação histórica. A perseguição ao cangaço não foi apenas profissional — foi pessoal.
Quelé e José Pereira: uma relação em três atos
Organizei o livro mostrando a evolução da relação de Quelé com o coronel José Pereira de Lima, chefe político de Princesa:
- Combate ao cangaço (1924–1926): José Pereira reconhece a coragem de Quelé e o convoca para liderar volantes, chegando a promovê-lo por mérito.
 - Passagem da Coluna Prestes (1926): atuaram como aliados; José Pereira coordena a estratégia, e Quelé assume as missões mais arriscadas.
 - Revolta de Princesa (1930): a ruptura. Quelé permanece leal ao governo legal, e José Pereira passa a atacá-lo publicamente.
 
Essa mudança — de aliados a adversários — revela como a política sertaneja funcionava sob a lógica do poder, e não da gratidão.
A perseguição a Lampião durante e após o ataque a Mossoró (1927)
No capítulo sobre o fracassado ataque de Lampião a Mossoró, demonstro que Quelé estava no centro dos acontecimentos.
Logo após o ataque, quando moradores acreditaram que Lampião havia retornado, o que entrava na cidade era a tropa de Quelé, composta por 45 homens armados, com ordens para perseguir Lampião em qualquer estado.
Em seguida, Quelé iniciou a maior caçada interestadual já registrada contra Lampião:
Avançou por Russas, Aurora, Limoeiro do Norte e outras cidades do Ceará. Impediu a reorganização do bando e forçou sua dispersão em pequenos grupos. A disciplina de sua tropa rendeu telegramas desde críticas às moções de agradecimento enviadas por Mossoró, Limoeiro, Russas e Aracati.
À imprensa, causou impacto o fato de que a volante comandada por Quelé estava tão extenuada e adaptada ao sertão que chegou a ser confundida com o próprio bando de Lampião, pela aparência e pelos cabelos longos. Nesse momento, Quelé foi saudado como herói.
Após Mossoró: a perseguição ao subgrupo de Virgínio (1936)
A atuação de Quelé não termina em 1927. Nove anos depois, quando Virgínio (Moderno) — cunhado de Lampião — invadiu a região de Alagoa do Monteiro, Quelé novamente reagiu com prontidão. Mesmo mais velho, permaneceu como referência: organizou forças locais, expulsou o subgrupo do território, e reafirmou sua reputação de combatente implacável. Esse episódio de 1936 simboliza que o combate de Quelé ao cangaço não foi episódico, mas uma guerra de vida inteira.
Escrevi este livro para devolver a Clementino Quelé o que lhe foi negado: memória, contexto e dignidade histórica. Quelé não foi um mito nem um monstro. Foi homem real, com grandeza, contradições e dor.
A obra apresenta Clementino como figura complexa: estrategista, corajoso e implacável. Sua entrada oficial nas volantes foi incentivada por líderes políticos que enxergaram nele alguém com conhecimento profundo da caatinga. Mas também se registra a face dura da repressão: execuções sumárias, torturas e retaliações contra moradores suspeitos de auxiliar cangaceiros.
Não faço concessões à sua imagem. Mostro a tênue linha entre legalidade e arbítrio num sertão onde o Estado era profundamente precário. Não há heroificação. O Sargento Quelé surge como um homem do sertão, moldado pela dureza dos tempos, capaz tanto de bravura quanto de violência. É, em si mesmo, a síntese do próprio sertão: corajoso, contraditório e trágico.
José Tavares é escritor e pesquisador do Cangaço
