O blog publica a seguir, artigo do historiador e pesquisador Frederico Pernambucano de Melo, veiculado em primeira mão pelo jornal Estado de Minas. Trata-se de uma análise profunda sobre o cangaço, daí a importância da sua disseminação com grupos de estudos sobre cangaço.
Historiador explica como cangaço se consolidou no imaginário nacional
Frederico Pernambucano de Mello
Especial para o EM
No reino do Sertão do Nordeste do Brasil, de área maior do que muito país mundo afora, os cangaceiros começaram a erguer uma espécie de Ordem a partir do Século XVIII, assentando valores derivados da cultura pastoril, normas de conduta peculiares, disposições sobre a mesa, a festa, a música, a dança, a luta, a estética, também um apelo viscoso ao catolicismo popular, sem esquecer os anseios de riqueza e de abundância, ao menos enquanto durasse a vida de correrias.
Com Lampião, a um tempo famoso e famigerado como Rei do Cangaço, a organização se moderniza na linha das bases capitalistas introduzidas no interior pela genialidade de Delmiro Gouveia, de quem Virgulino fora tropeiro em anos verdes, ao lado de pai, tio e irmãos.
Reconhecimento através da poesia e folhetos de Cordel
O reconhecimento pela poesia de gesta, a cantar as façanhas dos chefes de cangaço na impostação fanhosa dos violeiros e dos cegos rabequistas de pátio de feira, depois nos autores de folhetos cuspidos da prensa em xilogravura, era buscado igualmente pelos nossos aventureiros, animando o abraço da viola com o punhal, de utilidade para ambas as partes. Os detalhes das aventuras resvalavam para a narrativa teatral dos ciganos novidadeiros, de ribeira em ribeira, de fazenda em fazenda, sítio em sítio, a relatar as ocorrências mais recentes, recolhendo moedas e atenções, arvorados em jornalistas de chapéu de couro e alpercata de rabicho naquele Sertão do nunca mais.
Destruir a sociedade patriarcal não se desenhava no horizonte da Ordem do Cangaço. Afinal, os capitães das antigas Ordenanças, velharia lusitana chegada ao Brasil em 1575, ou os coronéis da Guarda Nacional, sucessores daqueles a partir de 1831, não eram vistos necessariamente como inimigos, podendo até lhes servir de escada ao propósito de cravar uma cunha na elite sertaneja, arredando oposições e abrindo espaço para a existência da confraria das estrelas de couro dispostas na aba arrebitada dos grandes chapéus. Afinal, ao contrário do que supuseram os intérpretes marxistas, coronéis e cangaceiros se aliaram, em regra, na obtenção de seus propósitos. União útil a ambas as partes.
Ao pé do conceito original e guardadas as proporções, o leitor não ignora que estamos tratando de uma entidade ao estilo das que nos vieram da Idade Média, de organização a um tempo militar e religiosa, criadas pela nobreza feudal para levar a guerra aos hereges. Da Europa à Terra Santa. Era isso a Ordem. Houve várias. Cavaleiros Templários, Cristo, Avis, Santiago da Espada… Aguerridas, violentas, nobilitantes, olhos postos no céu e nas armas. Não há exagero em dizer que a nobreza de Portugal foi forjada na guerra. Eis a matriz da tradição épica brasileira, requentada ao rubro nos sertões do Nordeste. Onde colhemos na mocidade os brados de guerra: “Bofetada? mão na espada; bofetão? sangue no chão!”
Na caatinga, a nossa Ordem do Cangaço desce do cavalo, de emprego nem sempre funcional naquele mar de espinhos de um verde desmaiado e toma por inimigo a combater não o herege, mas o litorâneo, permanentemente de costas para o interior, a brandir o roçado de cana-de-açúcar sobre o curral de gado, na busca de todas as benesses do poder político colonial, imperial e mesmo republicano. Vem daí a aliança, quase simbiose, do coronel com o cangaceiro, ao invés da oposição entre ambos, como pensaram os muitos intérpretes em seus gabinetes nas academias, no afã de chegar à luta de classes que tudo explicava.
Já dissemos em livro que os chefes de cangaço mais bem sucedidos alongaram-se em coronéis sem terra, vivendo à margem de disciplinas e de patrões como estes. A espingarda substituindo a gleba como fonte de poder. Assim, um Cabeleira, um Lucas da Feira, um João Calangro, um Cirino Guabiraba, um Rio Preto, um Antônio Silvino, um Sinhô Pereira, um Zé Baiano, um Corisco, um Lampião.
Prova disso é que tratavam os coronéis de igual para igual, sem que implicasse quebra do respeito. De potência para potência. Choques episódicos, naturalmente.
Confrades da Ordem do Cangaço
As práticas brutais, os confrades da Ordem do Cangaço não inventaram. Nasce das lutas pioneiras de franciscanos, jesuítas, beneditinos e carmelitas por todo o vale do São Francisco, ao longo dos séculos inaugurais da colonização, a partir de 1503, no esforço desesperado de garantir o plantio indígena contra a pata de boi brandida pelos vaqueiros da Casa da Torre, de Garcia d’Ávila, e da Casa da Ponte, de Guedes de Brito, empresários pecuaristas chegados ao Brasil em 1549, como integrantes da pequena nobreza aqui aportada com Tomé de Souza, primeiro governador-geral do Brasil. O extermínio das tribos e a “limpeza da terra” vinham em seguida, como prova de merecimento para requerer da Coroa a doação em sesmaria dos campos regados com o sangue indígena. De quebra, alcançavam o perdão para os criminosos de sua guarda pessoal, desde que estes tivessem voltado o bacamarte contra o arco e a flecha. Uma colonização banhada em sangue. Da chã da caatinga aos pés, dobras e pontas das serras.
Não há outro modo de explicar o épico à flor da pele que nos vem de tudo isso. A herança que Euclides da Cunha encerrou na frase: “O Sertão guarda, para todo o sempre perdidas, tragédias espantosas”. Como não há modo de ignorar que daí é que brotou, e se conserva cada vez mais vivo, o equivalente brasileiro do romance de cavalaria medieval. Bem andou Mário de Andrade quando fez publicar na revista “Nova”, de São Paulo, nos idos de 1932, o “Romanceiro de Lampião”, valendo-se do pseudônimo de Leocádio Pereira, reaproveitando o escrito no clássico “O baile das quatro artes”, de 1943. Vindo de São Paulo, andara por aqui em 1928 e sentira que os registros jornalísticos de um cangaço ainda muito ativo à época, mostravam só a epiderme do rio de seiva humana que corria no Nordeste profundo e informava os menestréis do folheto de cordel. Um Leandro Gomes de Barros, um Francisco das Chagas Baptista, um João Martins de Athayde. A escrever, imprimir e vender na mesma banca de feira, ao mesmo leitor ávido de aventuras, a “Batalha de Oliveiros e Ferrabraz” ou “As lágrimas de Antônio Silvino por Tempestade”. A epopeia de lá, que remonta ao ano de 778, nos Pireneus, conhecida no Brasil desde 1728, e o romance daqui, de 1909. A mesma força aliciante. “Eram doze cavaleiros; homens muito valorosos; destemidos, animosos; entre todos os guerreiros…”.
Em meio a estudos, dissertações, teses, romances, novelas, dramaturgia, filmes, pinturas, artesanato e vídeos, contam-se aos milhares as produções sobre o cangaço. Quem ignora que o longa-metragem brasileiro mais premiado de todos os tempos, com dois anos de permanência em cinemas de Paris, foi “O cangaceiro”, de Lima Barreto, de 1953? Ou que a série de 114 pinturas, gravuras e desenhos sobre o tema, deixada pelo nosso maior talento nos pincéis, Cândido Portinari, desdobrada entre os anos de 1951 e 1958, ocupa hoje a cabeceira de museus renomados mundo afora? Ou que os longas-metragens ideologizados de Glauber Rocha, “Deus e o diabo na terra do sol”, de 1964, e o “Dragão da maldade contra o santo guerreiro”, de 1969, são debatidos nos dias que correm? Ou que a peça de teatro Lampião, de Rachel de Queiroz, de 1953, ganha a cena de vez em quando? E que os dois romances temáticos de José Lins do Rego, “Pedra bonita”, de 1938, e “Cangaceiros”, de 1953, ainda fascinam? E que, dentre os estrangeiros, fizeram sucesso os livros “The Bandit King: Lampião of Brazil”, de Billy Jaynes Chandler, 1978, publicado no Texas, e “Lampião: Vies et Morts d’un Bandit Brésilien”, de Élise Grunspan-Jasmin, Paris, 2001?
A produção em livros de interpretação é enorme e cresce a cada ano. É de se imaginar a angústia que se apossa do pesquisador de outra região do Brasil ou do estrangeiro – e não são poucos – ao se aproximar desse caudal de substância épica, bracejando em meio à pluralidade de escritos e à heterogeneidade inevitável de que se revestem. Pois bem, aí está o texto de uma primeira visão do tema em grande angular, expresso em alegoria, de par com os marcos da grandeza que este veio a tomar, no plano da representação simbólica. E há muito mais por aí, a exemplo da novela “Guerreiros do sol”, da Globoplay, roteiro de George Moura e Sérgio Goldenberg, inspirada em livro nosso desse título, para a qual prestamos consultoria.
Frederico Pernambucano de Mello é autor dos magníficos livros sobre o fenômeno Cangaço no Nordeste, “Guerreiros do Sol”; “A Guerra de Canudos”, sobre o movimento liderado por Antônio Conselheiro. Foto: Editora CEPE
Fonte: jornal Estado de Minas
Foto de Capa: Pedro Maia e Lauro Cabral, Lampião em Juazeiro do Norte, 1926