José Tavares de Araújo Neto

No cenário conturbado da política brasileira de 1929, uma data se eternizou na memória cívica da Paraíba: o Dia do Nego, celebrado em 29 de julho, marcou a recusa oficial do Estado à candidatura de Júlio Prestes, imposta como sucessor por Washington Luís, então presidente da República. Foi um gesto de ousadia do então presidente João Pessoa, que desafiou o poder central, elevando a Paraíba do papel de coadjuvante à condição de protagonista nacional no movimento de oposição que culminaria, em nível estadual, na Revolta de Princesa e, em âmbito nacional, na Revolução de 1930.

A expressão “nego”, nesse contexto, não consta de nenhum documento oficial, mas surgiu por analogia histórica ao célebre “Fico” de D. Pedro I, em 9 de janeiro 1822. Com ela, o povo passou a nomear o gesto altivo do presidente paraibano João Pessoa, que liderou o diretório do Partido Republicano Estadual e rejeitou, por unanimidade, o apoio ao candidato oficialista.

A narrativa do Conselheiro José Américo

O episódio é narrado em detalhes por José Américo de Almeida, principal conselheiro de João Pessoa, no livro O Ano do Nego. Américo descreve com minúcia o instante decisivo em que o presidente da Paraíba, após consulta ao seu tio e mentor político Epitácio Pessoa — então membro da Corte Internacional de Haia, decidiu aderir à Aliança Liberal, coligação de oposição encabeçada por Getúlio Vargas e respaldada pelos Estados de Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

Apesar de João Pessoa ser um homem conservador, legalista por convicção e avesso a levantes militares, compreendeu que a imposição de Júlio Prestes violava a lógica rotativa da chamada política “café com leite”, que alternava o poder entre São Paulo e Minas Gerais. Seu gesto não era apenas uma desobediência partidária: era um desafio frontal à hegemonia do Catete e ao presidencialismo patrimonialista que sufocava os Estados menores.

A resposta oficial da Paraíba foi expressa em dois telegramas. Um, enviado ao deputado Tavares Cavalcanti, líder da bancada paraibana, comunicava a decisão unânime do diretório de rejeitar Júlio Prestes. O outro, enviado ao deputado gaúcho João Neves da Fontoura, afirmava o apoio da Paraíba à candidatura de Getúlio Vargas e aceitava o convite para que João Pessoa integrasse a chapa como candidato à vice-presidência da República.

Curiosamente, João Dantas — que meses depois se tornaria seu algoz — elogiou publicamente o gesto. Em um telegrama respeitoso, parabenizou João Pessoa por sua altivez e coragem, reconhecendo a grandeza do ato que projetava a pequena Paraíba como protagonista de um momento decisivo da política nacional. Neste telegrama, Dantas elogiou a postura altiva de João Pessoa, destacando a coragem de agir sem medir consequências:

Tenho satisfação felicitar vossência altivez atitude, caso sucessão presidencial, com a qual, sem consultar interesse, sem medir consequências, afirmou vossência brilhantemente seu nome e colocou nosso pequeno Estado na vanguarda do grande prélio. Saudações – João Duarte Dantas.”

Simbolismo do “Nego”

O simbolismo do “nego” ultrapassou a política e entrou para o imaginário popular como sinônimo de bravura, de independência e de compromisso com o sentimento democrático. O gesto foi aclamado por populares, mesmo entre os que previam consequências desastrosas — como o próprio José Américo, que em sua crônica confessa o temor de que “a brincadeira custasse caro”. E custou. Pouco tempo depois, a tensão política resultaria no assassinato de João Pessoa em 26 de julho de 1930, no Recife, e sua morte seria usada como estopim para a Revolução que depôs Washington Luís e impediu a posse de Júlio Prestes.

A Paraíba, “pequenina e boa”, como dizia Epitácio Pessoa, tornou-se naquele 29 de julho de 1929 “pequenina e doida”, como gracejou José Américo, pela ousadia de contrariar o curso esperado da história. O Dia do Nego, portanto, é mais que uma efeméride: é a celebração da dignidade política de um povo que, mesmo pequeno em contingente eleitoral, mostrou-se imenso em coragem e consciência cívica.

A respeito da motivação que levou João Pessoa a romper com o governo de Washington Luís, persistem interpretações divergentes. Segundo seus adversários, o presidente paraibano teria agido por mera ambição política. Após a recusa do presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, em compor a chapa da Aliança Liberal como vice de Getúlio Vargas — então presidente do Rio Grande do Sul —, a indicação recaiu sobre João Pessoa, que ainda não tinha se posicionado politicamente. Somente então ele decidiu aceitar o convite e alinhar-se à oposição.

Seja qual for o juízo sobre suas motivações, em tempos em que o conformismo ainda se impunha como regra, a Paraíba ousou dizer não. E esse não — esse “nego” — ecoa até hoje como um dos mais simbólicos gestos de independência da história republicana brasileira.

José Tavares e historiador e pesquisador da Revolta de Princesa e cangaço

Foto: bandeira da Paraíba anterior a 1930 e a atual

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