Nessa segunda metade do século XXI, o mundo assiste ao desmoronamento do império norte-americano, sua moeda em irreversível declínio, o fim do mundo unipolar, para o surgimento de uma nova ordem internacional multipolar; essa virada praticamente se deu com dois fatos ocorridos no início desse século: a derrubada das Torres Gêmeas simultaneamente ao ataque ao Pentágono, em 2001; e o assassinato do general iraniano Qasem Soleimani, em janeiro de 2020, ordenado pelo presidente do EUA, Donald Trump.
Mas quem foi Soleimani?
Soleimani, aos 62 anos, liderou as operações militares iranianas no Oriente Médio como comandante da Força Quds, unidade de elite da Guarda Revolucionária do Irã, que derrotou a Al Qaeda no Iraque e seus tentáculos na Síria – responsável direto pela derrocada do terrorismo no Oriente Médio.
A seguir, o blog reproduz artigo do correspondente internacional Pepe Escobar, traduzido para o site Brasil 247, para compreensão do concatenamento dos fatos e o desenrolar das mudanças geopolíticas, que colocam a China como potência global dominante.
Como o General Soleimani deu partida ao mundo multipolar
Pepe Escobar
Aeroporto de Bagdá, 3 de janeiro de 2020, 00:52 hora local. O assassinato do General Qassem Soleimani, comandante da Força Quds do Corpo de Guardas da Revolução Islâmica (CGRI), juntamente com Abu Mahdi al-Muhandis, vice-comandante da Hashd al-Sha’abi iraquiana, por mísseis Hellfire AGM-114 lançados de dois drones MQ-9 Reaper, foi, de fato, um assassinato como ato de guerra.
Esse ato de guerra deu o tom para a nova década e inspirou meu livro Raging Twenties: Great Power Politics Meets Techno-Feudalism, publicado em inícios de 2021.
Os ataques de drones no aeroporto de Bagdá, diretamente aprovados pela figura do entretenimento pop/empresário então Hegêmona no comando, Donald Trump, constituiu um ato imperial arquitetado como uma dura provocação, capaz de engendrar uma reação iraniana, que então seria respondida com “autodefesa” e rotulada de “dissuasão”.
A proverbial saraivada narrativa repetida até a saturação, rotulou o assassinato como uma “morte direcionada”: uma operação preemptiva para esmagar o suposto plano do General Soleimani de “ataques iminentes” contra diplomatas e tropas dos Estados Unidos. Nenhuma evidência foi apresentada para substanciar a acusação.
Todos, e não apenas no Eixo da Resistência – Teerã, Bagdá, Damasco, Hezbolá – mas por todo o Sul Global, sabiam que o General Soleimani havia comandado a luta contra o Daesh no Iraque, de 2014 a 2015, e como sua atuação foi fundamental na retomada de Tikrit, em 2015.
Esse foi seu verdadeiro papel – o de um verdadeiro herói na guerra contra o terror, não na guerra do terror. Para o Império, admitir que sua aura cintilava até mesmo pelas terras vassalizadas do Islã sunita era anátema.
Coube ao então primeiro-ministro iraquiano Adil Abdul-Mahdi, frente ao Parlamento de Bagdá, colocar o verdadeiro contexto: o General Soleimani, em missão diplomática, havia embarcado em um voo de carreira no Airbus A320 da Cham Wings de Damasco a Bagdá. Ele participava de negociações complexas entre Teerã e Riad, tendo o primeiro-ministro iraquiano como mediador, tudo a pedido do Presidente Trump.
Então, a máquina imperial – persistindo na zombaria do direito internacional que vem marcando sua atuação nas últimas décadas – assassinou um enviado diplomático de fato.
Na verdade, assassinou dois, porque al-Muhandis mostrava as mesmas qualidades de liderança que o General Soleimani, promovendo ativamente a sinergia entre o campo de batalha e a diplomacia, sendo considerado absolutamente insubstituível como articulador político no Iraque.
O assassinato do General Soleimani vinha sendo “incentivado” desde 2007 por uma mistura tóxica de neocons straussianos e conservadores neoliberais – escandalosamente ignorantes da história, da cultura e da política do Sudoeste Asiático – em consonância com os lobbies israelense e saudita em Washington.
Trump, no conforto de sua total ignorância quanto a questões de relações internacionais e de política externa, não seria capaz de entender o Grande Quadro e suas sombrias ramificações, por contar apenas com defensores do Israel-em-primeiro-lugar do tipo Jared “da Arábia” Kushner sussurrando em seu ouvido.
O Rei agora está nu
Mas então foi tudo ladeira abaixo.
A resposta direta de Teerã ao assassinato do General Soleimani, na verdade bastante contida face às circunstâncias, foi cuidadosamente medida para não desencadear uma desenfreada “dissuasão” imperial.
Essa resposta tomou a forma de uma série de ataques de mísseis de precisão contra a base aérea sob o controle americano de Ain al-Assad no Iraque. O Pentágono, o que é de importância crucial, foi avisado com antecedência.
E foi precisamente essa resposta comedida que acabou sendo o grande ponto de virada.
A mensagem de Teerã deixou explicitamente claro – para todo o Sul Global ver – que os dias da impunidade imperial haviam chegado ao fim.
Qualquer excepcionalista com um cérebro em funcionamento não deixaria de entender a mensagem: somos capazes de atingir seus ativos em qualquer local do Golfo Pérsico – e mais além, na hora que bem entendermos.
Essa foi a primeira vez que o General Soleimani, mesmo depois de abandonar seu corpo mortal, contribuiu para o nascimento do mundo multipolar.
Esses ataques de mísseis de precisão contra a base de Ain al-Assad contaram a história de uma potência de nível médio, enfraquecida por décadas de sanções e enfrentando uma maciça crise econômico-financeira, respondendo a um ataque unilateral ao atacar ativos imperiais que são parte de um Império de mais de 800 bases.
Em termos históricos, essa foi a primeira vez em todo o mundo, desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
E todo o Sudoeste Asiático – bem como vastas áreas do Sul Global – interpretaram o ocorrido da forma correta: O Rei agora está nu.
Examinando as mudanças no tabuleiro de xadrez
Três anos após o assassinato, percebemos agora de que outras maneiras o General Soleimani vem abrindo caminho para a multipolaridade.
Houve mudança de regime no Hegêmona – com o trumpismo sendo substituído por uma tóxica quadrilha de conspiradores conservadores-neoliberais infiltrada de neocons-straussianos, que controlam remotamente uma entidade belicista senil que mal consegue ler um teleprompter.
A política externa dessa quadrilha se mostrou extremamente paranoica, hostilizando não apenas a República Islâmica, mas também a parceria estratégica Rússia-China.
Esses três atores, por acaso, são os três principais vetores do processo de integração eurasiana atualmente em curso.
O General Soleimani talvez tenha predito, antes de qualquer outra pessoa exceto o Líder da Revolução Islâmica, o Aiatolá Seyyed Ali Khamenei, que o JCPOA – ou o acordo nuclear do Irã – estava definitivamente morto e enterrado , como a farsa recentemente encenada nestes últimos meses em Viena deixou claro.
Ele, portanto, deve ter previsto que, com o novo governo do Presidente Ebrahim Raisi, Teerã finalmente abandonaria qualquer esperança de ser “aceita” pelo coletivo ocidental e passaria a abraçar seriamente seu destino eurasiano.
Anos antes de seu assassinato, o General Soleimani já previa uma “normalização” entre o regime israelense e as monarquias do Golfo Pérsico.
Ao mesmo tempo, ele tinha plena consciência da posição da Liga Árabe em 2002 – compartilhada, entre outros países, por Iraque, Síria e Líbano: uma “normalização não pode sequer começar a ser discutida sem um estado palestino independente – e viável – com as fronteiras de 1967 e tendo Jerusalém Oriental como capital.
O General Soleimani percebia o Grande Quadro por todo o Oeste Asiático, do Cairo a Teerã, e do Bósforo até o Bab-al-Mandeb. Ele certamente previu a inevitável “normalização” da Síria no mundo árabe – a Turquia inclusive, atualmente um trabalho em andamento.
É possível imaginar que ele tivesse gravado em seu cérebro o possível cronograma a ser seguido pelo Império do Caos para se livrar por completo do Afeganistão – mas não, certamente, da extensão da retirada humilhante – e como isso iria reconfigurar todas as apostas, do Oeste Asiático à Ásia Central.
O que ele certamente não sabia é que o Império deixou o Afeganistão para concentrar toda a sua caótica estratégia de Dividir para Dominar na Ucrânia, em uma letal guerra de procuração contra a Rússia.
É fácil imaginar o General Soleimani prevendo que Mohammad bin Zayed (MbZ), de Abu Dhabi, o mentor de Mohammed bin Salman (MbS), concentraria todas as suas apostas, simultaneamente, em um acordo de livre comércio entre Israel e os Emirados e em uma détente com o Irã.
Ele talvez tenha participado da delegação diplomática, na ocasião em que o consultor de segurança de MbZ, o Xeique Tahnoonmet, se encontrou com o Presidente Raisi, em Teerã, há mais de um ano, chegando a discutir a guerra no Iêmem.
Ele poderia ter previsto o que ocorreu neste último fim de semana em Brasília, na esteira do espetacular retorno de Lula à presidência do Brasil: autoridades sauditas e iranianas, em território neutro, discutindo uma possível détente.
Como todo o tabuleiro vem sendo reconfigurado em velocidade alucinante por todo o Oeste Asiático, o único desdobramento que o General Soleimani não poderia ter previsto é a substituição do dólar pelo petroyuan “no espaço de três a cinco anos”, como sugerido pelo Presidente chinês Xi Jinping em sua histórica e recente cúpula do Conselho de Cooperação do Golfo.
Eu tenho um sonho
A profunda reverência pelo General Soleimani expressa por todas as camadas da sociedade iraniana – das bases à liderança – certamente se traduziu nas honras prestadas à obra de sua vida: a busca do lugar merecido pelo Irã na multipolaridade.
O Irã agora se solidifica como um dos principais nós das Novas Rotas da Seda no Sudoeste Asiático. A parceria estratégica Irã-China, impulsionada pelo ingresso de Teerã na Organização de Cooperação de Xangai (OCX) em 2022, é tão forte, em termos geopolíticos e geoeconômicos, quanto as parcerias interligadas com outros dois membros dos BRICS, Rússia e Índia. Em 2023, o Irã deve se tornar membro dos BRICS+.
Paralelamente, a tríade Irã/Rússia/China estará profundamente envolvida na reconstrução da Síria – que inclui projetos da ICR indo desde a ferrovia Irã-Iraque-Síria-Leste do Mediterrâneo até, em um futuro próximo, o gasoduto Irã-Iraque-Síria, que pode ser visto como o principal motivo da guerra de procuração americana contra Damasco.
Soleiman, hoje, é reverenciado no santuário Imam Reza, em Mashhad; na mesquita al-Aqsa, na Palestina; no espetacular Duomo do Barroco tardio em Ragusa, no sudeste da Sicília; em uma stupa no alto dos Himalaias e em um mural de arte de rua em Caracas.
Por todo o Sul Global, há um sentimento pairando no ar: o novo mundo que vem nascendo – que se espera que seja mais igualitário e justo – foi, de algum modo, sonhado pela vítima do assassinato que desencadeou os Frenéticos Anos Vinte.
Tradução de Patricia Zimbres
Fonte: Brasil 247
BBC