Como um país agrário, feudal até o ano de 1949, em desenvolvimento até os anos 1970, se tornou a segunda potência econômica global em 2019; está no limite da industrialização e e tecnologia, e que se tornará a maior potência global econômica e militar até 2030?
Para compreender o avanço da civilização chinesa, o blog replica a seguir segunda parte de trechos do artigo do cientista Yao Zhongqiu recentemente publicado pelo site Outraspalavras.
A Modernidade e sua crise – vistas da China
por Yao Zhongqiu
Na esteira da ascensão da China, a velha ordem mundial dominada pelo Ocidente foi abalada. No entanto, o detonador de seu colapso é a instabilidade resultante da incapacidade dos Estados Unidos em assegurar o domínio global unipolar que perseguiram após o fim da Guerra Fria.
Historicamente, o império Romano não conseguia alcançar a Índia, muito menos aventurar-se além das Montanhas Pamir. Por outro lado, as dinastias Han e Tang dificilmente conseguiriam manter seu poder, mesmo que tivessem conseguido atravessar essa cordilheira. A estabilidade estrutural do mundo é que as nações se mantenham em equilíbrio, ao invés de que sejam governadas por um único centro.
Mesmo os imensos avanços tecnológicos em transportes e guerras foram incapazes de mudar essa lei de ferro. Antes da Segunda Guerra Mundial, as potências ocidentais penetraram quase todos os cantos do mundo, apesar de seus interesses concorrentes e da necessidade de uso da força para manter suas colônias, esse sistema de governo foi, em certo sentido, mais estável que a atual ordem, por ter distribuído o poder de forma mais ampla entre diferentes países. Enquanto isso, no período do pós-guerra, a União Soviética e o Ocidente formaram dois blocos opostos na Guerra Fria, com cada um dos campos tendo seu próprio espectro de influência e, em alguma medida, sendo equilibrados um pelo outro.
Em contraste, com o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos se tornaram a única superpotência a dominar todo o mundo. Os Estados Unidos, como o país ocidental mais recente a ser estabelecido, o último “Novo Mundo” que foi “descoberto” pelos europeus, e o mais populoso dentre tais potências, estava destinado a ser o último capítulo nos esforços do Ocidente por dominar o mundo. Os Estados Unidos anunciaram com convicção que sua vitória sobre a União Soviética constituía o “fim da história”. No entanto, a ambição não pode superar os duros constrangimentos da realidade. Sob domínio exclusivo dos Estados Unidos, a ordem mundial imediatamente se tornou instável e fragmentada. A chamada Pax Americana foi muito curta para ser escrita nas páginas da história. Depois da breve euforia do “fim da história”, sob os governos de Bush e Clinton, a era Obama viu os Estados Unidos iniciarem uma “contração estratégica”, buscando aliviar, pouco a pouco, seus fardos de governo global.
Somados aos custos externos, a busca fugaz de Washington pela hegemonia global também induziu tensões internas. Embora os Estados Unidos tenham obtido muitos dividendos de seu domínio imperial, com o desenvolvimento de um sistema financeiro que permite a alocação global de capital, isso teve um custo. Como diz o ditado chinês, “uma bênção pode ser um infortúnio disfarçado” (福兮祸所依, fú xī huò suǒ yī). O boom do setor financeiro dos Estados Unidos, junto com a especulação volátil que o nutre, provocou a desindustrialização do país, cujos efeitos foram sentidos pelas condições de vida da classe trabalhadora e da classe média. Devido às medidas de autoproteção dos países emergentes, como a China, tornou-se impossível que esse sistema financeiro extraísse integralmente os ganhos externos para cobrir as perdas provocadas pela desindustrialização, sofridas pelas classes populares. Como consequência, os Estados Unidos desenvolveram níveis extremos de desigualdade de renda e se tornaram uma sociedade altamente polarizada, com divisões e antagonismos crescentes entre diferentes classes e grupos sociais.
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Desindustrialização dos EUA é irreversível
A desindustrialização está na raiz da crise dos Estados Unidos. Durante o século XIX, as potências ocidentais puderam exercer sua tirania sobre o mundo, incluindo o assédio à China, devido principalmente a sua superioridade industrial, que os permitiu produzir os mais poderosos navios e canhões. A desindustrialização faz com que o fornecimento desses “navios e canhões” se torne insuficiente. Mesmo o sistema industrial-militar dos Estados Unidos tornou-se fragmentado e excessivamente custoso dado o declínio das indústrias que o sustenta. As elites estadunidenses compreenderam a gravidade desse problema, mas os sucessivos governos enfrentaram dificuldades para lidar com a questão. Obama defendeu a reindustrialização, mas não obteve nenhum progresso devido aos impasses entre republicanos e democratas, em uma dinâmica que inibe ações efetivas do governo, denominada por Francis Fukuyama uma “vetocracia”. Trump seguiu essa linha com o slogan oportuno “Torne a América Grande Novamente” (em inglês, “Make America Great Again”), prometendo fazer com que os Estados Unidos fossem novamente a potência industrial mais forte do mundo. Essa intenção também pode ser vista no impulso da atual administração de Biden pela implementação da “lei dos Chips” (em inglês, CHIPS and Science Act) e outras iniciativas que objetivam impulsionar o desenvolvimento industrial interno. Os Estados Unidos teriam que minar o poder dos magnatas do capital financeiro para reviver sua indústria, mas como isso pode ser possível?
Ao contrário da desindustrialização que tem tido lugar nos Estados Unidos, a China está avançando consistentemente em seu quarto marco da industrialização, ascendendo rumo ao topo da indústria manufatureira global, apoiando-se nas fundações sólidas de uma cadeia industrial completa. Sentido a ameaça de que serão ultrapassados em termos de “poder duro” (em inglês, “hard power”), a elite estadunidense declarou a China como um “concorrente”, e a natureza da relação entre os dois países mudou fundamentalmente.
A elite estadunidense há tempos se refere a seu país como “Cidade na Colina”, uma noção cristã segunda qual os Estados Unidos teriam um status excepcional no mundo e seriam um “farol” a ser seguido por outras nações. Essa profunda crença de superioridade significa que Washington não pode aceitar a ascensão de outras nações e civilizações que há milhares de anos têm seguido seu próprio caminho, como a China. A ascensão econômica da China e, consequentemente, sua crescente influência na reformatação da ordem global liderada pelos Estados Unidos, não é nada mais do que um retorno do mundo a um estado de maior equilíbrio. Isso é, no entanto, um sacrilégio para Washington, comparável à rejeição da conversão religiosa para os missionários. É evidente que a boa vontade das elites dos Estados Unidos com relação à China já se esgotou, e que agora estão unidas na construção de uma estratégia hostil contra o país. Irão usar todos os meios para a disrupção do desenvolvimento da China e sua influência no cenário internacional. Por sua vez, a abordagem agressiva de Washington fez com que a China fortalecesse sua determinação em se desprender dos limites do sistema global liderado pelos Estados Unidos. A Pax Americana só permite que a China se desenvolva de forma subordinada aos ditames dos Estados Unidos, e por isso a China não tem escolha senão trilhar um novo caminho e atuar para estabelecer uma nova ordem internacional. Essa disputa entre Estados Unidos e a China certamente irá dominar as manchetes de todo o mundo no futuro próximo.
Falta força militar aos EUA para incursões por terra
Ainda assim, há uma série de fatores que diminuem as possibilidades de que essa disputa se desenvolva em termos catastróficos. Em primeiro lugar, os dois países estão separados geograficamente pelo oceano Pacífico. Em segundo lugar, embora os Estados Unidos sejam uma nação marítima adepta ao equilíbrio offshore, são muito menos capazes de empreender incursões por terra, particularmente contra um país como a China, uma potência de mar e terra com grande profundidade estratégica. Como resultado, os esforços dos EUA em lançar uma guerra total contra a China não seriam viáveis. Mesmo se Washington instigasse uma guerra naval no pacífico ocidental, as chances não estariam a seu favor. Além destas duas considerações, os Estados Unidos são, essencialmente, uma “república comercial” (definição inicial do país por um de seus Pais Fundadores, Alexander Hamilton), o que significa que suas ações são fundamentalmente baseadas em cálculos de custo-benefício. A China, pelo contrário, tem longa experiência em lidar com forças externas agressivas6. Somados, esses fatores indicam que uma guerra total entre os dois países pode ser inteiramente evitada.
As mudanças nas posições da China e dos Estados Unidos diferem muito das dinâmicas similares no passado, como a evolução da hegemonia no continente europeu nos últimos séculos. Neste contexto, os estreitos confins da Europa não comportam múltiplas potências, ao passo que o vasto oceano Pacífico certamente o permite. Esse é o elemento principal da relação entre os dois países. Assim, uma vez que China e Estados Unidos irão competir em todas as frentes, contanto que a China continue a incrementar suas forças econômicas e militares, e nitidamente expresse sua disposição de usar este poderio, os Estados Unidos irão recuar, da mesma forma como fez seu suserano anterior, a Inglaterra. Uma vez que os Estados Unidos se retirem do Leste Asiático e do Pacifico Oriental, uma nova ordem mundial começará a tomar forma.
Nos últimos anos, os esforços da China nesse aspecto surtiram efeito, resultando em que alguns setores nos Estados Unidos reconheçam o poder e a determinação da China e, de acordo com isso, ajustem sua estratégia, pressionando países aliados a assumir custos maiores na defesa da ordem liderada pelo Ocidente. Apesar da postura dos países ocidentais, não existe, de fato, uma “aliança das democracias”. Os Estados Unidos sempre basearam seus sistemas de aliança em interesses comuns, entre os quais o mais importante é trabalhar juntos não para alcançar qualquer ideal superior, mas sim para sugar o sangue de outros países. Uma vez que esses países não consigam mais assegurar lucros externos juntos, eles terão que competir entre si e seu sistema de alianças rapidamente será rompido. Em tal situação, os países ocidentais retornariam a uma situação similar ao período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, enfrentando-se uns contra os outros, em vez de dividir o mundo em colônias. Essa batalha de nações, embora não aconteça necessariamente por meio de uma guerra “quente”, pode fazer com que os países ocidentais retornem à situação em que se encontravam no início do período moderno.
A disposição dos Estados Unidos de fazer qualquer coisa em busca de lucro levou a uma rápida degeneração de seu sistema de valores. Desde que o ex-presidente Woodrow Wilson conduziu o país à posição de líder do sistema mundial, os “valores” estão no centro do apelo estadunidense. Naquela época, Wilson tinha grande influência entre muitos intelectuais chineses, embora isso tenha rapidamente se transformado em desilusão. Entretanto, hoje o mito do “sonho americano” e dos valores universais dos Estados Unidos permanecem cativando uma proporção considerável das elites chinesas, mas a presidência de Trump desmascarou esses supostos valores. Os Estados Unidos retornaram abertamente à crueza e brutalidade da conquista colonial e da expansão para o oeste.
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Além disso, a atual geração das elites ocidentais sofre de um déficit em sua capacidade de pensamento estratégico. Muitos dos principais estrategistas e táticos da Guerra Fria estão mortos, e no bojo de duas décadas de arrogância e dominação que marcaram a era do “fim da história”, os Estados Unidos e países europeus não foram capazes de produzir uma nova geração de intelectuais afiados. Consequentemente, diante de seus dilemas atuais, o melhor que essa geração das elites pode oferecer não passa de reformulações de velhas soluções e do retorno à banalidade do período colonial.
Esse tipo de banalidade pode chocar alguns, mas tem raízes profundas na história dos Estados Unidos: do genocídio contra os povos indígenas provocado pelos colonos puritanos para construir sua chamada “Cidade na Colina” até os Papéis Federalistas que desenharam um complexo sistema de separação de poderes para garantir liberdade, mas discutiram superficialmente sobre comércio e guerra entre países, chegando a obsessão com o direito de portar armas, que dá a cada indivíduo o direito de matar em nome da liberdade. Assim, podemos ver que Trump não trouxe a banalidade aos Estados Unidos, apenas revelou a tradição escondida da “república comercial” (é válido notar que, na tradição ocidental, os comerciantes também tendem a ser piratas e saqueadores).
Atualmente os Estados Unidos quase completaram esta transformação de sua identidade: de uma república de valores para uma república de comércio. Essa versão de país não possui a vontade unitária de retomar sua posição de líder da ordem mundial, como tem sido evidenciado pela contínua e forte influência da retórica “América Primeiro” (em inglês, “America First”). O crescente apoio a essa banalidade política entre algumas parcelas da população dos EUA irá encorajar mais políticos a seguir esse exemplo.
A ordem mundial continua sendo liderada por um número de Estados poderosos, mas em meio a instabilidades significativas, uma vez que os esforços de fortalecimento da União Europeia fracassaram, a Rússia tende a continuar em declínio, a China está ascendendo, ao Japão e à Coréia do Sul faltam real autonomia, e os Estados Unidos, devido a pressões financeiras, têm rapidamente se desresponsabilizado de apoiar a rede de alianças e instituições multilaterais do pós-guerra, passando a construir sistemas bilaterais que maximizem seus interesses específicos. Em termos mais simples, a ordem mundial está desmoronando, e as questões relevantes do momento estão relacionadas com quão rápido será esse processo, como uma ordem mundial alternativa deveria ser, e se essa nova ordem pode emergir e ser efetiva no tempo para evitar a proliferação de graves instabilidades globais.
Fonte: Outras palavras ( por Yao Zhongqiu)
Vermelho, site 247