Por W. J. Solha

Virgulino dizia que cruzar com raposa no caminho é sinal de más notícias. E ensinava que se um dos cachorros uivava, ou um bando deles fazia uma latideira agoniada, a coisa seria pior.

Certa vez um sabiá desceu bem perto dele e levantou cisco, alvoroçando-se, todo “arrupiado”, e isso bastou pra que reunisse os capangas e fugisse, minutos antes que a polícia fechasse o lugar.

Foi graças a essas coisas que ele chegou a chefe. Quando o bando entrou numa casa da fazenda Forquilha, o dito Nhô Sebastião Pereira, então no comando da corriola, mal chegou foi logo se esparramando numa rede, mas Virgulino deu o aviso: Compadre, beba água e vamos furar pra diante, que os ‘macacos’ vêm aí! Pereira tomou o rapaz por nervoso, ao que Lampião disse “Pois então se prepare que vamos levar tiro já e já”. E foi só no que deu. Já em Souza do Ceará, o grupo desceu pra uma fazenda onde só havia milho para comer, Virgulino cismou: “A gente vai comer é pipoco de bala e muito, se ficar aqui mais cinco minutos”. Dito e feito. Daí por diante, com fama de adivinho, mandingueiro, e de capaz até de ficar invisível, passou a decidir onde e quando se devia ficar, fugir ou atacar. E de pajé a cacique passou, sem que ninguém sentisse.

Mas, depois de passar a perna na polícia de sete estados, durante cerca de vinte anos, foi esconder-se num beco sem saída, como a Grota dos Angicos. Por que? Talvez porque sentisse que a sua hora estava chegando, e a danada da Grota parecia o Horto em que Jesus suara sangue e fora preso.

Bando de lampião, em 1922, após assumir o comando

Tudo, no fim de Lampião, foi muito esquisito. E no começo também. Nertan Macedo cita o “Cancioneiro de Lampião”, de autor não identificado:

“Não era ele rebento

De Maria e de José?

Não foi criança inocente

Nos campos de Nazaré?”

De fato, Virgulino era filho de José Ferreira da Silva e de Maria Selene da Purificação.

 

No meu romance A BATALHA DE OLIVEIROS, versifico isso:

Nunca botaste teu tino

na família a fugir sem destino,

levando de tudo – até os bodes –

que só se tivesse nos mocotós outro Herodes,

mudando,

que coincidência,

pra Vila de Nazaré?

No entanto, é tudo verdade

e dou fé.

O mais danado, entretanto

é que o povo desse lugar

tinha fama de tão valente,

que o meu Capitão Virgulino,

por derradeiro inocente,

dizia, já em pequeno:

“Procedo de Vila Bela

mas não digo mais que sou dela,

porém que sou Nazareno!”

 

Zé Sereno cita o aviso de Corisco

No final, muita coisa estranha, também. Pra começo de conversa, Zé Sereno bem que insistiu no dito de Corisco de que coito de uma só saída – a Grota, no caso – era cova de defunto, e frisou o fato de que tinha visto nas rolhas das garrafas de cachaça, fornecidas pelo coiteiro, furos de agulhas de injeção, sinal de que as bebidas trazidas por ele estavam envenenadas. E ainda teve mais: Mané Félix chegara de Piranhas dizendo que o sargento Aniceto tinha botado o vaqueiro Joca Bernardes no canto da parede, e conseguido, dele, a informação de que Pedro de Cândido sabia de Lampião! Por que não fugir, escapar de uma vez?

Alguns dias antes de morrer, Lampião chegou muito abalado junto de seus cabras, e contou que estava na margem do grande rio, quando o Nêgo do São Francisco lhe apareceu e ficou parado, olhando pra ele, coisa de fazer medo. Isso lembra a visão do anjo no Jardim das Oliveiras.

Depois disso, dizem que Virgulino ficou parecendo tísico. Mofino o tempo todo, falou que precisava de um retraimento, pra ver se podia viver mais uns dias. “Tô morto – resmungava. – Não sou mais homem pra essa vida”.

Há uns versos dele que dizem assim:

“Estou bem perto do fim

que ele bom não pode ser.

Mato João, Pedro e Martim

e onde vou comparecer?

Já fiz tudo que queria

que me importa viver?”

Além de Xaxado, o bando também curtia Fox-blues

Lampião morreu em 38, o mundo, lá fora, à beira da grande guerra, o que iria dar num grande progresso da ciência e da tecnologia, que Virgulino acompanhava pelas revistas O Cruzeiro,… Fon-Fon, … A Noite Ilustrada…. Vai daí que, quando mais o bando, atravessa o São Francisco pra chegar à Grota, cruza com um jazz-band que, noutra barcaça, viaja de Traipu para Pão-de-Açúcar. Virgulino paga cinquenta mil réis pra cada músico e eles tocam… fox-blues de Cole Porter; de Louis Armstrong, o repertório do Mahogany Hall Stomp, disco da Polydor, que o fanático Júlio Cortázar citaria em Rayuela e Jazzuela, e que diria ter comprado em Buenos Aires, em 1935.

Maria Bonita estava ranzinza, bruta com Virgulino que, macambúzio, atinava que o tempo dele tinha passado: usava uma arma de 1908, recebida do Padrim Ciço em 1926 com a patente de capitão, um fuzil transformado em mosquetão-máuser pelo amigo Mestre Né, mas assim mesmo capenga, em vista das metralhadoras belgas de vinte tiros, Hotchkiss de trinta disparos, com que a polícia vinha.

No France Soir saiu, no dia seguinte ao da morte de Virgulino, estampado na primeira página: “Morreu o Rei Vesgo do Sertão”. Em Nova Iorque o fato também foi manchete, e na Alemanha, quando se tomou conhecimento da degola do cadáver, pediu-se ao Brasil a cabeça do cangaceiro, para lhe estudar o gênio! Isso me lembra a placa escrita em três línguas, no alto da cruz, que aquele era o rei dos judeus.

Família Ferreira reunida, em Juazeiro do Norte

E esse homem, esgotado, com mil contos de réis, ouro que dá para encher com gosto duas bacias de rosto, não só não deixa o cangaço, como teima em não sair da Grota. Por quê? O sertanejo sempre foi místico, esquisito, capaz de associações mentais quase inacreditáveis. A Juazeiro dos tempos do Padre Cícero repetia o episódio da adoração do Boi Ápis, nas rezas e bajulações em torno do Boi Mansinho, do Beato Zé Lourenço, por causa da mentalidade do homem num meio semelhante. Os flagícios a que os penitentes se impunham não passavam de repetição de cenas da Idade Média na Europa, provocadas pelo ambiente do Cariri, semelhantemente medieval. Mas tudo isso é bem menos esdrúxulo do que mais de seiscentos penitentes cantando e se disciplinando na Serra do Horto, perto daquela cidade – ainda nos seus primórdios – certos de que ali se encontravam os chamados Lugares Santos do Evangelho. A um quilômetro dali, no lugar conhecido como Veado Frio, havia umas pedras onde se dizia estar a sepultura de Jesus. O fenômeno se devia a uma litografia, nos diplomas da Irmandade do Santo Sepulcro, onde se via a semelhança entre o Juazeiro, Rio Salgadinho e a Serra do Horto, com Jerusalém, o Rio Jordão e Monte Calvário. Dizem que um doente, ao se banhar no Salgadinho, tomando-o pelo Jordão, ficara curado.

A leitura da “História de Cristo” e o perdão a Luiz Pedro

Lampião ganhou, certa vez, a “História de Cristo”, de Giovanni Papini. Talvez ali estivesse a razão de seu companheiro dileto se chamar Luiz Pedro, cabra que, numa brincadeira, sem querer, matara-lhe Ferreirinha, irmão muito querido, o da “Mulé Rendera”. O perdão do chefe cala tão fundo no assassino involuntário, que ele nunca mais cortará os cabelos nem as unhas, além do que jura que morrerá aos pés do seu comandante, o que, de fato, cumpre na Grota. Luís Pedro, na hora H, bem no meio do fuzuê… se mandou!, mas logo caiu em si e… acabou por morrer cheio de balas, aos pés de Virgulino. Lembra o tema do “Quo Vadis?”: São Pedro está fugindo de Roma, quando tem uma visão em que Jesus arrasta a cruz, pelo que o apóstolo lhe pergunta Pra onde, danado, tu já vai com essa cruz outra vez, Senhor?

O outro Pedro, esse de Cândido, trai o chefe! Veja que ele é o coiteiro fiel, o que faz todas as compras de munição de boca e de armas pro bando. Um tesoureiro, tal e qual Judas! Não foi à toa que Zabelê versejou depois:

“Ninguém no mundo se livra

do golpe duma traição.

Até Jesus foi traído

por um judeu sem ação

e morreu crucificado

sexta-feira da paixão.

Lá na Grota dos Angicos

no meio da escuridão

cercado de todo lado

ferido de supetão

foi pego, foi traído

o gigante do sertão”.

Quando Mané Félix chega na Grota, nota logo uma coisa estranha no bando e pergunta se tinham dançado, viajado toda a noite e o dia, para estarem daquele jeito, mal sentando e já dormindo.É a cena exata do Horto das Oliveiras!

Assombra ler, no livro de Papini, que os apóstolos tinham-se deixado vencer pelo sono. Os temores dos últimos dias, a torturante melancolia de um jantar que terminara com palavras tão graves e com tão lúgubres pressentimentos, tantas emoções repetidas, fizeram com que caíssem numa espécie de sonolência mais parecida com torpor do que com o sono natural.

Zé Sereno achou que aquela sonolência vinha de bebidas batizadas e que a polícia só conseguiu apanhar Lampião porque ele estava envenenado ou grogue.

Papini:

“lá embaixo, através dos arbustos que margeiam o caminho, luzes vermelhas aparecem e desaparecem na noite. São homens de Caifás, que sobem atrás de Judas.”

Pedro de Cândido chega no escuro, trazendo a volante. O Tenente João Bezerra, sem poder enxergar o caminho, acende sua lanterna, que é vermelha, pelo que leva uma bronca do coiteiro : “Hóm: tu quer que Lampião veja a gente de longe, é?”

Veja o arremate dos versos de cordel de Rodolfo Coelho Cavalcante:

“Lampião foi no inferno

Ao depois no céu chegou.

São Pedro estava na porta,

Lampião então falou:

Meu velho, não tenha medo,

Me diga quem é São Pedro

E logo o rifle puxou.”

SOBRE ESSE TEXTO:

Vivendo no sertão nordestino de 1962 a 1970, natural que ouvisse e lesse frequentemente a história do cangaço, bem como os cordéis, os casos de Lampião, que foram, lentamente – por força de minha pesquisa sobre Jesus – gerando esse estudo publicado, nos anos 70, no Correio da Paraíba. Acho que a ficha definitiva a respeito caiu quando li, no “Cancioneiro de Lampíão”, de Nertan Macedo , que o cangaceiro “ era rebento de Maria e José / e foi criança inocente nos campos de Nazaré”. Na verdade, ele era oriundo de um lugar chamado Vila Bela – quase Belém – mas, por uma “herodiana” perseguição à família, ela se foi, inteira, pra Nazaré – Nazaré da Mata, Pernambuco – e o povo de lá pareceu, sempre, tão valente ao Rei do Cangaço, que ele passou a se dizer… Nazareno.

Outro livro que me impressionou muito, nessa linha, foi “Mistérios do Joazeiro” , de M. Dinis, datado de 1935, em que se falava de 600 penitentes cantando e se disciplinando na Serra do Horto, perto daquela cidade do Ceará, certos de que ali se encontravam os chamados Lugares Santos do Evangelho. O fenômeno se devia às reproduções de Jerusalém e do Monte Calvário litografadas nos diplomas da Irmandade do Santo Sepulcro, onde havia extraordinária semelhança de Joazeiro, Rio Salgado e da Serra do Horto, com Jerusalém, o Rio Jordão e o Gólgota. Dizia-se, inclusive, que um doente, ao se banhar no Salgadinho, tomando-o pelo Rio Jordão, ficara imediatamente curado.

Carl Gustav Jung tem uma teoria curiosa a respeito do que ele chama de “Sincronicidade” – fenômeno formado por “Coincidências Significativas” , como as que eu vislumbrava entre Lampião e Jesus. No rastro delas, li a “História de Cristo”, de Giovanni Papini, que Virgulino ganhara de presente em 1929, posando, inclusive, pra uma foto com ele nas mãos. E me surpreendi ao ser remetido – diante da descrição que o italiano faz da cena do Getsêmani – a toda aquela sequência da Grota dos Angicos, em que Lampião é traído, cercado e morto, inclusive com o detalhe da sonolência geral do bando e dos apóstolos , mais o caso da lanterna vermelha que o tesoureiro Judas e o coiteiro Pedro de Cândido trazem, guiando a polícia até o local da entrega de seus respectivos líderes, mais a minúcia da volta do fiel Luís Pedro – que conseguira escapar do tiroteio e voltara – como se ouvisse um “Quo Vadis?” – para morrer aos pés de Lampião. E, se Jesus recebeu o maldito beijo de Judas, Virgulino morre metralhado pela “Hotkiss” do Tenente Bezerra! “Beijo Quente”.

Bem, some-se a isso a existência dos famosos cordéis “A Chegada de Lampião no Inferno”, bem como “A Chegada de Lampião no Céu” – ambos de José Pacheco – ,que nos remetem diretamente à oração do Credo, em que se diz que Jesus “desceu ao infernos, ressurgiu dos mortos no terceiro dia e subiu ao céu”.

Dessa pesquisa – com dezenas de outros detalhes – resultou o tal ensaio que foi publicado, também, no último número da revista DESED, do Banco do Brasil, em 79, e no CORREIO DAS ARTES, conforme foto abaixo, em abril de 2018.

SE JESUS FOI A LUZ DO MUNDO, VIRGULINO ERA LAMPIÃO, me fez ver que meu romance A VERDADEIRA ESTÓRIA DE JESUS, publicado em 79 pela Ática, teria de ser revisto, o que foi reforçado pela experiência forte que foi para mim o estudo que fiz sobre Pilatos, ao me preparar para o papel dele no AUTO DE DEUS, de Everaldo Vasconcelos, no início do século. Pôncio era um oportunista. O imperador Tibério, chocado com a vida escandalosa da jovem neta Cláudia Prócula, divulgara que daria um cargo importante a quem se casasse com ela, desde que fosse bem longe – como Jerusalém.Ao me perguntar Como eu reagiria se fosse um padre? O resultado foi outro romance, RELATO DE PRÓCULA, em que meu protagonista, Padre Martinho, cria um novo evangelho apócrifo, o da mulher de Pilatos, que conta como viajara de Roma até a Judeia tendo também, a bordo, Jesus, cuja missão seria a de se dizer o messias e pregar que se desse a César o que NÃO era de César e que não se resistisse ao Mal.

W.J.Solha é romancista, poeta e artista plástico. Também, premiado como ator.

 

Todas as reações:

6Verneck Abrantes de Sousa, Carlos Cartaxo e outras 4 pessoas

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *