Por Adriano Carvalho

Para compreender plenamente a complexidade do fenômeno do cangaço, é necessário adotar uma abordagem mais aprofundada e analítica, despida de influências ideológicas que possam distorcer sua interpretação. Quem se dedica a estudar esse tema com rigor certamente perceberá que o cangaço foi, acima de tudo, um reflexo das relações sociais e das disputas de poder que marcaram as elites brasileiras, desde o período imperial até o início da República. A atuação desses grupos, organizados de forma independente ou inseridos em redes de influência específicas, era algo que não somente era conhecido pelas autoridades da época, mas também frequentemente negligenciado e, em diversos casos, abertamente incentivado. Há evidências históricas que apontam para o apoio estrutural, financeiro e logístico recebido por tais grupos, às vezes de maneira direta, outras vezes de forma mais discreta. Em determinadas circunstâncias, os próprios governantes utilizavam os cangaceiros como instrumentos para consolidar sua presença e assertividade em locais estratégicos, seja para proteger seus próprios interesses ou para beneficiar aliados políticos.

Essa interdependência ficava especialmente evidente na figura dos coronéis, homens que detinham poder local expressivo e que frequentemente contavam com respaldo estatal como um meio de preservar seus privilégios e consolidar suas influências. Como parte desse arranjo de conveniência, as autoridades da época frequentemente ignoravam – ou fechavam os olhos intencionalmente – para os excessos cometidos pelos cangaceiros. Atos violentos e atrocidades praticados contra sertanejos eram frequentemente tolerados quando os alvos eram indivíduos que representavam ameaças ao domínio dos coronéis ou à estabilidade das alianças políticas entre elites locais e regionais. Esses acontecimentos configuram uma rede intricada de clientelismo, onde predominava uma troca de favores baseada na cumplicidade. Nesse contexto, os cangaceiros – também referenciados como jagunços ou “cabras” – desempenhavam o papel de agentes ativos na proteção e sustentação de práticas que frequentemente ultrapassavam os limites da legalidade.

Uma análise detalhada dessa estrutura revela uma dinâmica na qual relações de poder eram sustentadas por meio da exploração do povo sertanejo, que muitas vezes se via submetido à violência como um componente intrínseco da realidade política local. O vínculo entre conflito armado e autoridade política evidenciado no cangaço reflete um padrão histórico onde a violência foi utilizada não apenas como instrumento de controle social, mas também como ferramenta estratégica de perpetuação de privilégios por parte das elites. Essa simbiose entre violência e política, permeada por atos de cumplicidade e omissão, é um testemunho perturbador das tensões constitutivas da história brasileira em períodos anteriores.

Modelo governamental incapaz

Em meio ao caos instaurado por um modelo governamental incapaz de gerir suas próprias atitudes, o regime encontrou-se aprisionado pelas consequências advindas de sua complacência e, em muitos casos, de seu incentivo — fosse ele direto ou indireto — às questões que agravavam a instabilidade social. O cenário da época destacou o crescimento explosivo da influência dos cangaceiros, cuja força muitas vezes rivalizava com a dos coronéis, marcando uma profunda transformação na dinâmica de poder regional. Paralelamente, o avanço da industrialização adentrava o sertão e as cidades urbanizadas manifestavam seu repúdio a tais grupos, criando demonstrações claras de uma ruptura entre o tradicionalismo rural e os novos valores urbanos. Diante desse quadro preocupante, tanto empresários quanto representantes da administração pública passaram a reconhecer que era imprescindível confrontar as consequências do descaso que eles próprios perpetuaram. Assim surgiram as volantes: destacamentos formados por sertanejos intimamente familiarizados com o ambiente hostil dos cangaceiros, mas que, paradoxalmente, reproduziam as mesmas práticas violentas que condenavam, seja aquelas provenientes dos grupos de cangaceiros ou dos próprios coronéis.

Enquanto isso, o sertanejo continuava a ser a principal vítima das tribulações da região. Ele estava preso em um ciclo de opressões que incluía tanto os abusos severos dos coronéis quanto os crimes perpetrados pelos bandos de facínoras. Como se não bastasse, o advento das volantes adicionou uma nova camada de sofrimento à sua realidade já marcada pela dureza do clima árido, pela fome incessante e pela pobreza extrema. Esse cenário desolador refletia de forma contundente a corrupção institucionalizada e o sistema de clientelismo que caracterizavam os governos daquela era, deixando claro como as políticas orientadas pelo interesse próprio contribuíram para moldar um panorama tão cruel para o povo do sertão.

Adriano Carvalho é editor, escritor e pesquisador cearense.

Foto: Benjamim Abraão

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