Por José Tavares de Araújo Neto
Eu conheci o reggae em 1978, recém-chegado à Escola de Agronomia do Nordeste, na histórica cidade de Areia. Morava nos alojamentos da própria escola, enquanto os gringos, como chamávamos os colegas caribenhos, viviam espalhados por repúblicas improvisadas. Eram figuras ensolaradas, cheias de sotaques misturados e discos raros que pareciam carregar outros mundos.
Curioso é que, antes de Areia, eu já tinha ouvido aquele som sem nome. Nas noites da Associação dos Estudantes Universitários de Pombal, o toca-discos às vezes soltava uma batida diferente, uma guitarra arrastada, uma pulsação que mexia com o corpo sem pedir licença.
Eu achava bonito e estranho, mas não sabia que aquilo se chamava reggae. Era apenas um sopro misterioso entre uma MPB e outra.
Foi em Areia que as peças se encaixaram. Uma noite, conversando no alojamento com meu companheiro Edvaldo, de Ingá, o Delegado, confessei que nunca tinha visto maconha na vida. Ele ficou incrédulo, riu, coçou o queixo e decidiu que aquele desconhecimento precisava ser resolvido. E, em tom quase oficial, me intimou a conhecer a erva.

E lá fomos nós subir o morro em direção à cidade. Delegado me levou a uma das repúblicas dos gringos. As ruas de Areia estavam frias e silenciosas, e seguimos como quem vai decifrar um segredo ancestral.
Ao abrir a porta da república, fomos recepcionados pelos simpáticos republicanos. O cheiro forte, adocicado, quase vegetal, tomou conta de mim.
A sala estava em penumbra, a fumaça desenhava arabescos no ar e a vitrola explodia um reggae profundo, vibrante, querendo derrubar as paredes.
Apesar da música em alto volume, havia ali um silêncio interior, uma suspensão do mundo, como se tudo respirasse no mesmo compasso do grave.
Foi naquele instante, espesso de fumaça e batida, que entendi enfim o nome e a alma daquele som que já rondava minha juventude.
A batida carregava rastros da África que atravessou o Atlântico, do Rastafári que transformou a Etiópia em destino espiritual, da resistência que encontrou na música uma forma de existir.
Depois soube que o reggae chegou ao Brasil pelas ondas de rádio, pelos marinheiros, pelos discos clandestinos, e que encontrou no Maranhão o seu grande terreiro. São Luís fez o impossível: virou Jamaica Brasileira. No resto do país, Bob Marley, Peter Tosh e Jimmy Cliff abriam caminhos.
Jimmy, aliás, fez morada afetiva no Brasil, cantou com Gilberto Gil, circulou por Salvador, gravou no nosso idioma e misturou sua ilha ao nosso litoral. Por aqui, Edson Gomes abriu veredas. Gil fundiu o ritmo à alma da MPB. Vieram depois Cidade Negra, Natiruts e tantos outros, até o reggae se integrar ao coração sonoro do país.
Mas comigo tudo começou ali, naquela república esfumaçada, cercado de risadas caribenhas e curiosidade estudantil, ouvindo aquele grave que parecia pulsar dentro da gente.
E a vida, que adora fechar seus círculos, me devolveu a cena muitos anos depois.
Em setembro de 2025, na festa de reencontro dos ex-alunos da Escola de Agronomia de Areia, encontrei novamente o querido amigo Delegado.
Conversamos como quem abre um baú antigo. Rimos das velhas travessuras, recuperamos episódios do tempo de estudante e percebemos que certas histórias marcam a vida de forma indelével.
Era o mesmo companheiro que me levou à república dos gringos e me apresentou, de uma só vez, à maconha e ao reggae.
A vida gira como um velho LP. Sempre volta à mesma música, só que tocada com outra maturidade no coração.
# José Tavares é pesquisador e historiador do Cangaço
