José Tavares de Araújo Neto
“Pai, se queres, afasta de mim este cálice.”
(Lucas 22:42)
A canção Cálice, composta por Chico Buarque e Gilberto Gil em 1973, ocupa um lugar destacado na história da música popular brasileira como símbolo de resistência à censura e à repressão da Ditadura Militar.
Criada durante um dos períodos mais sombrios do regime, sob a vigência do AI-5, a obra traduz, em linguagem poética e metafórica, a experiência coletiva do silenciamento imposto à sociedade brasileira.
A composição nasceu de um encontro dos dois artistas durante a Semana Santa, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.
O contraste entre a paisagem serena e o clima de violência política que dominava o país reforça o caráter simbólico da canção, concebida desde o início como um gesto de enfrentamento.
Em vez do protesto direto, Chico e Gil optaram pela sutileza da linguagem, explorando ambiguidades semânticas capazes de atravessar a censura e alcançar o ouvinte atento.
A palavra “cálice” constitui o eixo central da canção. Ao ser cantada, confunde-se propositalmente com a expressão “cale-se”, transformando um símbolo religioso em denúncia política.
A referência bíblica é decisiva. O verso retoma a súplica de Jesus no Jardim do Getsêmani e a converte de oração religiosa em clamor político. O cálice já não representa apenas o sofrimento espiritual do Cristo, mas o peso histórico da repressão, a dor coletiva de um país impedido de falar.
Essa estratégia poética tornou Cálice imediatamente suspeita aos olhos da censura. A música foi proibida e permaneceu vetada por cinco anos, sendo lançada oficialmente apenas em 1978.
Antes disso, tentativas de execução pública foram interrompidas, em episódios que acabaram por materializar, de forma quase alegórica, o próprio tema da canção. O silêncio imposto pelos censores repetia, na prática, a ordem implícita no refrão.
O texto da música é atravessado por imagens densas e perturbadoras. A expressão “vinho tinto de sangue” evoca tanto o sacrifício cristão quanto o sangue real derramado pelas vítimas da tortura e da violência de Estado.
O verso “mesmo calada a boca, resta o peito” afirma a persistência da consciência e da resistência interior, sugerindo que o silêncio forçado não anula o pensamento nem o sentimento.
Já o “monstro da lagoa”, imagem posteriormente comentada por Gilberto Gil, remete aos corpos de desaparecidos políticos que surgiam em rios e mares, trazendo à superfície aquilo que o regime tentava ocultar.
Trata-se de uma metáfora perturbadora, que desloca a paisagem cotidiana para o território do horror político.
Cálice é uma canção austera, contida e profundamente ética. Sua força não reside no grito, mas na tensão permanente entre o que se deseja dizer e o que é impedido de ser dito.
A melodia, de andamento grave e quase litúrgico, reforça o caráter de oração e lamento, aproximando a experiência política de uma dimensão espiritual e existencial.
A letra constrói um campo constante de fricção entre voz e silêncio. Cada verso parece lutar para existir, como se estivesse sempre à beira da interrupção. Essa contenção formal não é apenas estética, mas política.
A canção encena, em sua própria estrutura, a experiência da censura e do medo, transformando o ato de cantar em gesto de resistência.
O jogo fonético entre “cálice” e “cale-se” figura entre os achados mais engenhosos da canção brasileira. Nele, a repressão torna-se som, obrigando o ouvinte a escutar aquilo que o poder tentava calar.
Ao ouvir Cálice, não se escuta apenas uma música, mas um tempo histórico marcado pela violência, pela vigilância e pela coragem silenciosa de quem resistiu sem alarde.
Ao final, a canção não oferece consolo fácil nem promessa de redenção imediata. Oferece memória, lucidez e permanência. Por isso, segue atual.
Enquanto houver tentativas de cercear a palavra e constranger a liberdade, Cálice continuará ecoando como um lembrete incômodo de que a arte, mesmo sob mordaça, encontra sempre um modo de dizer.
# José Tavares é escritor e pesquisador do cangaço
