Por José Tavares de Araújo Neto
A recente polêmica envolvendo a campanha da Havaianas, estrelada por Fernanda Torres, diz menos sobre publicidade e muito mais sobre o estado atual do debate público no Brasil.
O que era uma metáfora simples de fim de ano foi transformado, por setores da direita radical, em ameaça ideológica, ataque político e justificativa para boicote.
No comercial, a atriz propõe abandonar o clichê de “começar o ano com o pé direito” e substituí-lo por algo mais inteiro: começar com “os dois pés”.
A mensagem é clara, direta e universal. Fala de coragem, decisão e entrega. Ainda assim, bastou a palavra “direito” para que surgisse uma leitura literal, desconfiada e beligerante, como se a publicidade escondesse um manifesto partidário cifrado.
O episódio revela um fenômeno recorrente do nosso tempo: a incapacidade de lidar com metáforas sem transformá-las em trincheiras. Tudo passa a ser interpretado como sinal de guerra cultural. Um texto vira código secreto. Um artista vira inimigo. Um chinelo vira panfleto.
As reações de políticos e militantes, com acusações de “viés ideológico”, “ataque à direita” e “escolha do pé esquerdo”, mostram como o debate foi deslocado do campo simbólico para o campo paranoico.
Não se discute mais o sentido da mensagem, mas a intenção oculta que se deseja enxergar nela. A metáfora deixa de ser linguagem e passa a ser prova.
Há algo profundamente revelador nesse processo. A ideia de andar com os dois pés, de agir por inteiro, de não depender apenas da sorte, soa ameaçadora apenas para quem enxerga o mundo dividido em campos fixos, hierarquias rígidas e palavras proibidas.
O incômodo não está no anúncio, mas na liberdade de interpretação que ele permite.
A decisão da marca de retirar o vídeo do ar, sem uma explicação pública detalhada, evidencia o ambiente de pressão permanente em que empresas, artistas e instituições passaram a operar.
Não se trata mais de errar ou acertar na criação, mas de sobreviver à patrulha simbólica que transforma qualquer gesto em ofensa política.
No fundo, a chamada “ameaça” não é comunista, nem de direita, nem de esquerda. É outra: a ameaça de um espaço público onde metáforas possam existir sem serem criminalizadas, onde artistas possam falar sem pedir licença ideológica e onde objetos populares não precisem jurar fidelidade política para circular.
Quando até um chinelo precisa escolher lado, o problema já não está nos p és que caminham, mas no chão estreito onde querem nos obrigar a andar.
# José Tavares é escritor e pesquisador do Cangaço
