Por José Tavares de Araújo Neto
Seguir os trilhos do trem da Great Western é percorrer um dos caminhos mais decisivos da história do Nordeste brasileiro. Sobre barras de ferro assentadas entre o litoral e o sertão, a ferrovia não apenas transportou cargas e passageiros, mas redesenhou o território, acelerou o tempo, reorganizou economias e transformou o cotidiano de cidades inteiras.
O trem introduziu uma nova experiência de modernidade em regiões marcadas pela lentidão dos caminhos de terra, fazendo do apito da locomotiva um símbolo de progresso, esperança e ruptura.
Essa experiência de modernidade não surgiu de forma espontânea nem homogênea. Foi resultado de um projeto histórico específico, marcado pela entrada do capital estrangeiro, pelas exigências do mercado exportador e pela necessidade de integrar áreas produtoras do interior aos portos do litoral.
É nesse contexto que se insere a atuação da Great Western of Brazil Railway, empresa britânica criada no final do século XIX, cuja presença no Nordeste estruturou a mais extensa e influente rede ferroviária regional do país.
Criada em Londres em 1872 e autorizada a operar no Império do Brasil em 1873, a Great Western passou a absorver e arrendar ferrovias já existentes, entre elas a Recife and São Francisco Railway, inaugurada em 1858 e considerada a primeira estrada de ferro de efetiva importância econômica do Brasil.
A lógica era clara: conectar o interior produtor aos portos do litoral, assegurando o escoamento de açúcar, algodão, álcool, madeira, gado e outros produtos que sustentavam a economia nordestina.
Pernambuco tornou-se o eixo estruturador dessa rede. A partir de 1881, com o trecho Recife–Jaboatão, iniciou-se a formação da Linha Centro, que avançaria rumo ao Agreste e ao Sertão.
O maior desafio técnico foi a travessia da Serra das Russas, marcada por túneis, pontes e cortes em rocha, símbolo do esforço de engenharia necessário para integrar territórios até então separados por barreiras naturais.
A partir desse núcleo, a ferrovia expandiu-se para além de Pernambuco, alcançando a Paraíba, Alagoas e o Rio Grande do Norte, formando um sistema regional integrado.
O trem introduziu horários regulares, estimulou o trabalho assalariado, intensificou migrações internas e alterou profundamente os costumes.
Cidades passaram a se organizar em função da estação, do apito e da chegada cotidiana de pessoas, mercadorias e notícias.
Na Paraíba, essa expansão ganhou contornos decisivos com a formação do Ramal da Paraíba, articulado à antiga Estrada de Ferro Baturité, no Ceará.
Após alcançar Sousa, os trilhos avançaram rumo ao Sertão, fazendo de Pombal a estação de ponta de seu primeiro prolongamento.
A Estação Ferroviária de Pombal, inaugurada em 24 de outubro de 1932, representou a incorporação definitiva da cidade ao circuito ferroviário nordestino.
Posteriormente, os trilhos avançaram até Patos e Campina Grande, onde se conectaram ao Ramal de Campina Grande e, por extensão, à rede da Great Western, estabelecendo uma ligação contínua entre a Paraíba, Pernambuco e o Rio Grande do Norte.
A chegada do trem a Pombal foi amplamente festejada pela população.
Representava progresso, integração regional e novas possibilidades econômicas.
A ferrovia passou a transportar passageiros e cargas diversas, como gado, madeira, cimento e produtos agrícolas, encurtando distâncias e dinamizando o comércio local.
O impacto não se limitou à economia
O trem alterou hábitos, intensificou o fluxo de pessoas e provocou mudanças profundas na vida urbana, afetando serviços, práticas sociais e formas de sociabilidade, como ocorreu em tantas outras cidades ferroviárias do interior brasileiro.
Um marco decisivo dessa integração foi a construção da ponte ferroviária sobre o Rio Piancó, conhecida como Ponte do Trem ou Ponte Vermelha.
Inaugurada em 17 de janeiro de 1942, a ponte possui 270 metros de extensão e cerca de 6 metros de largura, constituindo-se em uma das mais expressivas obras de engenharia ferroviária do Sertão paraibano.
Sua inauguração consolidou Pombal como elo estratégico na ligação ferroviária do interior da Paraíba com o restante do Nordeste, vencendo um obstáculo natural de grande porte e fortalecendo o papel da cidade na malha regional.
A presença da ferrovia foi também decisiva para a instalação de empreendimentos industriais, como a fábrica da Brasil Oiticica, evidenciando o papel dos trilhos como indutores de investimentos e de diversificação econômica no Sertão.
Durante o auge da Great Western, sobretudo nas primeiras décadas do século XX, a empresa modernizou seu material rodante.
Operou locomotivas a vapor de origem britânica, norte-americana e alemã.
Modelos como Mogul, Consolidation e Mastodon tornaram-se comuns nos trilhos nordestinos, acompanhados por carros de passageiros de diferentes classes e vagões de carga padronizados.
Esses equipamentos simbolizavam uma modernidade técnica que contrastava fortemente com a paisagem sertaneja.
O declínio seguiu a trajetória conhecida da política ferroviária brasileira.
O avanço do transporte rodoviário, a redução dos investimentos e as mudanças no modelo econômico levaram à desativação progressiva dos serviços.
Em Pombal, o transporte de passageiros foi encerrado entre o final da década de 1970 e o início da década de 1980.
Permaneceram apenas os trens de carga, que resistiram até aproximadamente 2010.
Em 1950, a encampação da Great Western pelo governo federal deu origem à Rede Ferroviária do Nordeste, posteriormente incorporada à Rede Ferroviária Federal.
A Estação Ferroviária de Pombal, reconhecida por seu valor histórico, foi tombada em 2001 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep).
Apesar desse reconhecimento, o cenário atual é de abandono.
A estação, a ponte e o antigo leito ferroviário encontram-se em grande parte tomados pela vegetação, com acesso difícil e sinais evidentes de deterioração.
Registros recentes apontam para descaso e depredação do entorno, comprometendo a preservação desse patrimônio.
Hoje, a ponte sobre o Rio Piancó permanece como a imagem mais poderosa desse legado.
Mais do que uma estrutura de ferro e concreto, ela simboliza a ligação entre tempos distintos: o do progresso anunciado pelo apito do trem e o do silêncio que se seguiu ao abandono dos trilhos.
A ponte uniu margens, cidades e destinos.
Hoje, une memória e esquecimento.
Preservá-la é reconhecer que a história do Nordeste moderno não se fez apenas nos gabinetes e nos portos, mas também sobre trilhos que cruzaram rios, sertões e vidas.
Trilhos que deixaram marcas indeléveis na paisagem e na identidade de lugares como Pombal.
# José Tavares é escritor e pesquisador do Cangaço
