Por Jerdivan Nóbrega de Araújo

A mais recente carta pública de Jair Bolsonaro escancara duas de suas marcas registradas: a misoginia estrutural e uma autopercepção messiânica perturbadora.

Ignorando solenemente que 51,3% da população brasileira é composta por mulheres, o ex-presidente dirigiu sua mensagem apenas “aos brasileiros”. O lapso, longe de ser acidental, revela um desprezo arraigado pela presença e importância fundamental das brasileiras na construção da identidade nacional.

A engenharia da  narrativa, porém, é o elemento mais revelador. A carta foi publicada em 23 de dezembro, (Fontes oficiais verificadas: publicação da carta no perfil X/Twitter @jairbolsonaro e no site bolsonaro.com.br em 23/12/2023).

Mas foi datada pelo autor como 25 de dezembro – data simbólica do Natal. A escolha não é casual: busca estabelecer um paralelo subliminar entre a sua figura e a de Jesus Cristo.

A analogia se aprofunda de forma flagrante. Bolsonaro compara-se a Deus, “entregando seu primogênito ao sacrifício”, numa referência transparente ao filho, Flávio Bolsonaro. A equiparação de um político alvo de graves escândalos financeiros a uma figura messiânica que “salvaria o Brasil” já beira o delírio autorreferente.

O aspecto mais alarmante, contudo, reside nas entrelinhas. A construção cuidadosa desse imaginário religioso-político pressupõe e, ao mesmo tempo, alimenta um público predisposto a aceitá-lo. A carta não é apenas uma expressão de um complexo de grandeza individual; é um cálculo que revela e explora a devoção acrítica de um segmento capaz de transcender a razão e abraçar a narrativa como dogma. Esse é o verdadeiro perigo desvelado pelo texto: a naturalização de um messianismo político que encontra solo fértil em um contexto de polarização extrema.

# Jersivan Nóbrega é historiador e romancista

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