O blog reproduz vídeo veiculado pela página do Cariri Cangaço, onde Vilson da Piçarra narra a relação dos seus antepassados com Lampião; a pressão de militares que tomaram a família proprietária da Fazenda Piçarra como refém. A crônica a seguir tem coo fonte “Lampião na Paraíba – Notas para a História”, de Sérgio Augusto Dantas e“Apagando Lampião”, de Frederico Pernambucano de Mello.
Inimigo não trai; só os amigos; ou “na tortura toda carne se trai”
E foi exatamente isso que aconteceu na excessiva confiança em que Virgulino Ferreira depositava no coiteiro Antônio Teixeira Leite, proprietário da Fazenda Piçarra, Cariri cearense, que se viu forçado, com a casa ocupada por militares e a família usada com refém, obrigado a agir como “agente duplo”, favorecendo cangaceiros e volantes simultaneamente.
No ano da graça de 1928, Lampião e seu bando promove razias nas divisas Paraíba-Pernambuco-Ceará, mantendo na retaguarda o coito seguro de Antônio da Piçarra do lado do Cariri Cearense. As volantes do Ceará fazem “corpo mole” no combate aos bandoleiros, enquanto as volantes nazarenas, de Pernambuco, estão 24 horas ávidas e famintas para dar cabo em Lampião.
Volantes não dão sossego na escalada contra Lampião
O tenente Arlindo Rocha, cabecilha da volante pernambucana, desconfia da situação e da falta de empenho de outro chefe de volante também de sobrenome Rocha; tenente Eurico Rocha, líder da volante cearense. A ponto de tocar na ferida:
– Esse Antônio da Piçarra já passou da medida; ajudou e continua ajudando Lampião. Não é por falta de conselho, mas se Virgulino pisar, de novo na Piçarra, quem morre primeiro é Antônio Leite”, ameaça Arlindo Rocha.
Era uma mensagem com endereço certo. A advertência chega aos ouvidos do coiteiro Antônio da Piçarra pela boca do tenente Rocha, da volante Cearense. A pressão aumenta, o tenente Eurico Rocha lava as mãos e o coiteiro muda de lado: colabora na preparação de uma emboscada para Lampião, que mantém confiança cega no seu amigo, protetor e coiteiro, Antônio da Piçarra.
Piçarra demonstra sangue frio ao dar abrigo para Lampião no coito, ao mesmo tempo em que colabora na armação da emboscada. É inverno, noite de chuva forte; o chão clareia e estremece com relâmpagos e trovões.
Antônio da Piçarra havia recebido de Virgulino a missão de pegar munição encomendada e já paga em Juazeiro do Norte ao alfaiate e contrabandista de armas Júlio Pereira, homem do círculo fechado de amizades do Padre Cícero, que lhe dá o calote.
O coiteiro que tinha a missão de agilizar medicamentos, comida e a tal munição inexistente, estava demorando a chagar.
Sagacidade e morte de Sabino das Abóboras
Lampião, por esse tempo, já não contava mais com seus irmãos Livino e Antônio Ferreira. Restava o sagaz cangaceiro Sabino Gomes, o Sabino das Abóboras que discutia com o capitão de igual para igual na preparação de planos e nessas oportunidades se associava a Lampião nas rapinas em terras da Paraíba e Ceará, desconfia da demora do coiteiro.
Sabino Gomes: expertise em combate
– Amigo velho, Antônio da Piçarra está sendo falso! Se já não foi, está sendo! É demora muita e já deveria ter voltado”, adverte Sabino em conversa reservada com Lampião.
Em Sabino, os músculos estouravam a camisa, suas conversas com Lampião, não eram diálogos, eram sussurros, de tão baixo que o cangaceiro falava, apesar de ser bom conversador e possuidor de QI acima da média.
Sabino comunica a Lampião que a melhor tática é ir atrás do coiteiro, pegar a comida e a munição ao invés de esperar tempo ruim.
A volante pernambucana já está na área ocupando posições debaixo de moitas e esperando o temporal passar.
Para chegar à casa do coiteiro, tinha uma cerca no caminho. No momento em que Sabino se prepara para saltar esse referido obstáculo apoiando-se em duas estacas, um relâmpago clareia e transforma a noite em meio dia.
Pou!
Um tiro de fuzil, quase que à queima-roupa ecoa no ar, atingindo Sabino na “caixa dos peitos” que desaba da cerca e cai nos braços dos cabras que o acompanham.
Reza a lenda que o disparo certeiro foi dado pelo soldado de volante Hercílio Nogueira, um nazareno de primeiro time, bom de mira e de coragem comprovada.
A fuzilaria por parte da volante muda o som da noite e o clarão agora não é mais obra da natureza, mas das bocas dos fuzis que cospem balas à granel.
Irmãos Ferreira: Virgulino e Antônio
Enquanto Sabino Gomes é socorrido, Lampião organiza a retirada sem revidar os disparos, até porque a munição era pouca ou quase nenhuma.
Os dias seguintes são de martírio de Sabino Gomes. A ferida gangrena; sabedor que a morte o bafeja; friamente, o sagaz Sabino das Abóboras pede ao cangaceiro amigo que o conforta, Vicente Feliciano, que lhe passe a Mauser 45 – queria ver sua “ferramenta de trabalho” pela última vez.
Mas Feliciano desconfia das intenções do amigo que agoniza, esvazia a arma antes de entrega-la a Sabino.
O que se escuta é um tiro seco. O ardiloso plano de Sabino para tirar sua própria vida, fracassara. Lampião, seu amigo de longas jornadas, se recusava a dar o tiro de misericórdia.
– Capitão, em nome da nossa amizade, acabe com esse meu sofrimento, implorou Sabino.
Coube ao cangaceiro Mergulhão fazer o serviço.
Cariri Cangaço e Vilson da Piçarra: um relato familiar
Quanto a Antônio da Piçarra, sobreviveu. Sua propriedade, em Jati(CE), era e continuou sendo por muitos anos, passagem obrigatória para romeiros em demanda a Juazeiro do Norte, mas deixou de ser coito seguro para cangaceiros e também abrigo para volantes. Piçarra teve que fazer escolhas.
Coiteiro vivia entre dois mundos – e tirava proveito dos dois. Mas tinha sobre a cabeça a espada de Dâmocles.
Fonte: “Lampião na Paraíba – Notas para a História”, de Sérgio Augusto Dantas
“Apagando Lampião”, de Frederico Pernambucano de Mello.
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